Com a palavra, Luiz Morando

Por, Luiz Morando*

          Há 30 anos, venho acompanhando e reunindo material a respeito da organização social do segmento LGBTQIA+ no Brasil e pelo menos nos últimos 15 anos estou desenvolvendo pesquisa sistemática sobre o resgate da memória das identidades e das formas de sociabilidade do mesmo segmento em Belo Horizonte (MG).
          Tendo como referência esse trabalho, pelo menos dois aspectos, entre outros mais, eu gostaria de destacar aqui para tratar da importância da discussão sobre a diversidade sexual nos dias atuais. O primeiro remete a uma fala que pessoas na faixa etária acima de 60 anos repetiram nas entrevistas que fiz com gays e travestis de Belo Horizonte. Eles e elas mencionaram que abriram caminhos, nos anos 1960 e 70, que foram precursores e precursoras da liberdade que as gerações seguintes usufruíram. Sim, é verdade: ao modo deles e delas, sob o manto da repressão política civil-militar, mas também no contexto do desbunde, dos movimentos hippie e flower power, das ressonâncias da revolução sexual, dos ecos da segunda onda feminista, vivências e agências foram coletivizadas, redes solidárias foram construídas, experiências foram trocadas e uma pauta mínima a respeito da diversidade sexual foi instituída – o direito à liberdade de expressão, a ser como se é, ao respeito pelas identidades.
          Se, logo à frente, na década seguinte, o início da epidemia de uma doença que foi sendo conhecida aos poucos teve efeito devastador, ao mesmo tempo apressou a organização e o fortalecimento de novas estratégias para ampliar a reivindicação de direitos e a luta pela proteção à saúde, desenvolvendo e amadurecendo novas formas de participação política, de consciência e engajamento sociais e uma nova direção para o movimento, consolidando-o.
          Assim, sob uma perspectiva histórica, com um olhar voltado para o passado, discutir e refletir sobre a diversidade sexual hoje é importante porque nos permite ver certa tradição que nos antecede, muitas vezes desconhecida e ignorada, outras poucas desprezada. É importante fazer um reconhecimento histórico-cultural das experiências passadas para perceber que não chegamos onde estamos sem uma luta pelo reconhecimento da diversidade sexual iniciada lá nos anos 60, antes mesmo da formalização de um movimento social organizado em 1978.
          Por outro lado, um segundo aspecto diz respeito a um histórico de conquistas sucessivas iniciadas em 2011 (com o reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo pelo STF), passando por 2013 (com a autorização da conversão da união civil em matrimônio civil pelo CNJ), 2015 (pela possibilidade de adoção de crianças por casais LGBTQIA+ pelo STF), 2017 (pela permissão de retificação de nome civil por pessoas travestis e transgêneras sem precisar de laudo psiquiátrico ou algum outro tipo de pré-condição, também pelo STF) e, por fim, em 2019 (pela equiparação da lgbtfobia ao crime de racismo também pelo STF). Apenas essa cronologia é suficiente para mostrar a apatia e leniência do Poder Legislativo e do nível de alcance das conquistas do nosso segmento, ainda que as condições de vida e segurança ao nosso público tenham pouco melhorado.
          Mas a mudança de mentalidade por parte do Judiciário não teria ocorrido caso o debate sobre diversidade sexual, sobre gênero e sexualidade, sobre orientação sexual e identidade de gênero, se as políticas identitárias e, sobretudo, as paradas do orgulho LGBT não tivessem ganhado consistência e público, além de demarcado um posicionamento político, ao longo do tempo, a partir de 1995. A mesma mudança também não teria ocorrido se transformações políticas mundiais e avanços nas políticas de garantia de direitos de segmentos ditos minoritários não tivessem se aprofundado nos anos 90 e primeira década dos anos 2000 em diversos órgãos internacionais.
          Conversar, estudar, refletir, dialogar, pesquisar, buscar alianças, atuar politicamente no campo da diversidade sexual e de gênero é importante e inevitável. Os tempos atuais nos obrigam a isso de maneira mais efetiva, mais calculada, mais atenta, mais responsável. O confronto com o campo oponente – conservador e retrógrado (de diversas naturezas) –, exigirá mais habilidade, mais conhecimento, mais argumentos, mais jogo de cintura para saber falar sobre diversidade sexual de forma clara e para buscarmos aliados. Somente assim não seremos afogados no pântano do campo da direita.

*Luiz Morando licenciou-se em Letras, em 1989, pela UFMG. É Mestre em Literatura Brasileira (1992) e Doutor em Literatura Comparada (1997) também pela UFMG. Atua no magistério há 20 anos, ministrando aulas de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura no curso de Letras do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH). Entre 1992 e 2014, desempenhou trabalho voluntário no Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS de Minas Gerais (GAPA-MG), onde realizou ações e coordenou projetos de prevenção ao HIV/AIDS voltados ao público homossexual masculino. Em 1989, começou a reunir um acervo de natureza diversificada relacionado à temática LGBTQIA. A partir de 2000, iniciou trabalho sistemático e autônomo de resgate da memória das identidades LGBTQIA de Belo Horizonte. É autor do livro Paraíso das Maravilhas: uma história do Crime do Parque, publicado em 2008, e de artigos sobre seu assunto de pesquisa em publicações diversas.

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