(In)visibilidade trans/travesti ou sobre a urgência em visibilizar a cisgeneridade
Por Muriel Marinho*
Existem muitas questões a serem feitas e respondidas quando se trata da vivência e do processo de pessoas trans e/ou travestis que são importantes para a compreensão dessa realidade, embora nem todas elas ajudam no processo de mudança dessa realidade quando se trata do que fere e machuca esses corpos. Talvez vivenciamos hoje um enfoque nunca visto acerca de pessoas trans e travestis que faz com que desejemos conhecer melhor o que acontece, como acontece e em alguns casos não tão raros, se acontece.
Nesse ponto, é preciso localizar minha escrita para informar de onde eu falo; embora ainda há muito o que dizer sobre essa necessidade de informar. Eu sou uma mulher, travesti/trans, branca, de classe média baixa e universitária. Todos esses marcadores em relação uns com os outros possibilita uma visualização da probabilidade de acesso que pude ter a determinados direitos que, ao ser concedido em detrimento da falta de acesso de outrem, podem ser considerados privilégios sociais. Reconhecer a possibilidade desses privilégios ou inversamente o privilégio enquanto possibilidade, não retira da minha experiência as probabilidade de ter sofrido violências e é sobre todas essas coisas que quero compartilhar aqui.
Parto de uma escrita pautando o pessoal porque é importante que saibamos quem diz o quê e como diz. Sendo uma pessoa trans/travesti, existem muitos momentos na minha história em que ter como falar por mim mesma era extremamente difícil, um exercício de encontrar a voz e as palavras que fossem representativas o suficiente de tudo que vivenciava, um processo de criação cotidiana para nomear sentimentos, experiências, pensamentos, e em última instância até mesmo violências. Digo última instância porque reconhecer violências e nomeá-las partindo da sua própria experiência é extremamente difícil.
Penso que, inclusive, essa dificuldade é proposital. A estrutura social necessita que pessoas como eu, trans e travestis, não saibamos reconhecer e nomear as violências que sofremos ao longo da nossa vida e isso começa no processo de ausência de referências que atravessa as nossas histórias ou no processo de invisibilização dessas histórias. Por isso o processo de encontrar palavras, encontrar uma voz, é uma construção cotidiana que envolve multiplicidades, polifonias, mas que principalmente envolve o apagamento da possibilidade de falar e de singularidades emergentes. São as multiplicidades de outros que não as nossas próprias, outros cisgêneros.
O que quero dizer é que, ao longo da minha vida, foi recorrente eu aprender sobre eu mesma com outras pessoas. Isso é extremamente comum na experiência humana e inclusive desejável em algum ponto, mas que falando de onde estou, é também preocupante pois quer dizer que para poder me reconhecer e me afirmar tal como o faço hoje foi necessário um esforço enorme que inclusive depreende muita energia psicológica e física. Tal esforço se dá pelo fato de que, como todas as pessoas travestis e trans que conheço, nós crescemos em ambientes repletos de pessoas cisgêneras.
Diante disso é possível visualizar brevemente a dificuldade que é crescer em ambientes (porque não é só um) com pessoas que não só não são como você, mas também não têm conhecimento mínimo para lidar com todas as questões que te movem, afligem e/ou com quaisquer outras coisas que envolve a construção do ser. Deste modo, sua forma de falar vai ser sempre a forma de outros, e talvez aqui esteja uma ponto principal: o de que mesmo que pessoas trans estejam encontrando formas de falar, nem sempre encontram sua própria voz nisso que falam.
Muito disso vem da ideia de que nós precisamos falar da nossa experiência para outras pessoas, precisamos o tempo todo estar relatando como é ser trans e travesti e dentro disso buscar legitimar nossas vivências com base em discursos que são próprios daqueles com os quais tentamos nos comunicar, em grande parte e inicialmente pessoas cisgêneras, mas que logo se tornam formas instituídas de falar e informar para-com pessoas trans e travestis também. Isso é muito comum, por exemplo, nas críticas acerca da transexualidade feitas por alguns teóricos de estudos queer quando falam que a transexualidade foi uma categoria inventada pela medicina e que busca institucionalizar uma forma de ser trans legítima ou “o verdadeiro transsexual” com base em descrições que comporia essa experiência transexual verdadeira.
Tal processo é conhecido e sentindo em uma realidade não tão acadêmica por travestis que sofrem um processo de marginalização mais intenso com base nessas denominações que servem ao propósito principal de higienização social e de segregação, colocando travestis enquanto sujeitos desviados e pervertidos e a transexual enquanto a pessoa que não vive no próprio corpo e que precisa ser socorrida dos males do seu transtorno. De longe, essas duas coisas dizem pouco do que é ser trans e travesti, mas que ainda há muitas pessoas trans e travestis compartilhando desses discursos, o que também é totalmente compreensível. A questão não é exclusivamente demonizar discursos e formas de ser e de falar, mas chamar atenção para o que isso tudo diz sobre nós mesmas.
Na minha experiência, isso diz que vai sempre existir um processo de patologização das nossas experiências que vão exigir que não só falemos delas, mas que falemos de uma forma muito específica e que inclusive esse processo parte do isolamento social em diferentes instâncias. Isolar é nada mais que impossibilitar e/ou tirar o foco das relações que uma pessoa pode estabelecer. É muito comum que as pessoas pensem que o isolamento e invisibilidade de pessoas trans está apenas na falta de acesso à saúde de qualidade, à educação, à segurança. Todas essas coisas são extremamente importantes para uma vida digna, mas pensar apenas elas sem entender em que contexto esse isolamento nasce é pensar apenas uma parte da equação, a parte da equação que é propositalmente esquecida: as pessoas cisgêneras.
O termo cisgênero não surgiu logo quando inventaram o termo “transexualidade”, tal como aconteceu com os termos “homossexual” e “heterosexual”. Pessoas cisgêneras são aquelas que se reconhecem com o gênero que foi designado a elas quando nasceram, ou seja, pessoas que, por exemplo, foram ditas homens por terem pênis ou mulheres por terem vaginas e que seguiram se identificando e afirmando assim ao longo da vida. No entanto, ao contrário do termo “transexualidade” ou até “travesti”, a cisgeneridade quase nunca é discutida ou falada e até mesmo pensada pelas próprias pessoas cisgêneras.
Inclusive, é muito recorrente na própria Universidade muitas pessoas cisgêneras produzirem trabalhos acerca de pessoas trans buscando trazer visibilidade para a realidade dessas pessoas que não reservam um único espaço neste trabalho para refletir sobre as suas cisgeneridades. Há ainda pessoas que lutam contra esse termo, dizendo que isso é uma invenção da cabeça depravada de pessoas trans/travestis. O que isso revela é que na verdade dar visibilidade à causa das pessoas trans/travesti sem chamar atenção para a cisgeneridade é uma continuidade da patologização dos nosso corpos. Isso porque existe uma lógica por trás dessa não-reflexão aparentemente ingênua sobre a cisgeneridade: é que pessoas cisgêneras não se pensam como tal porque elas são ensinadas que são normais enquanto nós somos as pessoas trans (e nada mais que isso).
Ou seja, não refletir sobre a cisgeneridade é uma forma de anular pessoas trans/travestis enquanto pessoas, reafirmando a ideia de que temos um transtorno ou algum tipo de perversão, retornando a causa dos nossos problemas a nós mesmas, ou seja, individualizando as problemáticas sociais e nos isolando. Isso nos coloca mais uma vez no lugar de objeto uma vez que estaremos impossibilitadas de estabelecer relações, mas que somente seremos acessadas e uma das formas de acesso é inclusive quando exigem que falemos apenas das nossas experiências sem trazer para essa fala esse outro que a estimula. Ainda assim há processos de ruptura, pois estabelecemos relações entre nós, criamos formas de resistências e diálogo que estão longe de apenas pensar um “dentro” e um “fora” e que em algum momento até rompem com a noção de “cisgeneridade” e “travestigeneridade”.
No entanto, pensar essas categorias ainda se faz necessário principalmente por compreender que elas não acabam em si mesmas, elas estão em diálogo com outras categorias tais como raça e classe que, numa experiência cartográfica, podem dar dimensão de um ser que sim, é mais do que tudo isso, mas que também na realidade política da vida cotidiana, é também só isso. Dessa forma, é preciso que muita coisa seja questionada, especialmente o que é que estamos chamando de invisibilidade ou visibilidade trans. Penso que de certo modo estamos e sempre estivemos visíveis, mas de uma forma que foi determinada por pessoas cisgêneras. Nos colocar à margem tem um quê de invisibilização, mas também chama atenção para uma visibilidade específica, é um convite para olhar para esses corpos sob uma nova ótica.
Pois bem, talvez aqui está o convite: pensemos sobre a (in)visibilidade trans sob uma nova ótica, aquela que necessita que haja uma visibilização das pessoas cisgêneras não necessariamente porque precisamos vê-las apenas enquanto cisgêneras, mas para revelar que há um outro com o qual nos relacionamos que não está se pensando nessa relação e que precisamos que isso seja feito para que possamos avançar. O reconhecimento de privilégios e dos lugares sociais que ocupamos não servem, neste sentido, ao propósito de culpabilização, mas ao reconhecimento de vivências e de lugares de fala distintos necessários para um diálogo aberto sobre como essas experiências se afetam mutuamente e fazem parte de um jogo de construção e manutenção da estrutura social.
Nada disso exclui a urgência das outras demandas de pessoas trans/travestis, pois todas nós vivemos questões muito pragmáticas, mas a vida existe também nas relações que estabelecemos e que, para isso, necessita de vias abertas não apenas para o que é diferente e para o outro, mas para si mesmo: o processo de revolução político-social começa a partir do investimento numa educação libertadora sobre nós mesmas. O processo de revolução para uma visibilização das pessoas trans pautado numa educação libertadora começa quando nós nos propusermos a pensar em nós mesmas de outras formas, quando começamos a buscar a nossa voz e outros modos de falar, e que também quando as pessoas cisgêneras possam ser visibilizadas enquanto tal para se pensarem através desse lugar diante dessas outras trans, nunca enquanto um processo de controle sobre corpos, mas como um processo de construção de uma consciência política coletiva visando e visibilizando a libertação de todas/os/es.
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