Uma travesti que planeja seu futuro, sempre será uma travesti egoísta

Uma travesti que planeja seu futuro sempre será compreendida como egoísta, e isso acontece porque a cisgeneridade ver em nós uma espécie de passatempo seu: até o momento em que rompemos.

Me recordo dos olhares de várias pessoas que já não estão mais em minha vida, e de outras que estão saindo, ex-amigos e até familiares que se tornaram apenas conhecidos, e isso advém de uma junção entre objetificação, descrença e des-graça com vidas trans: é como se nós, fossemos boas apenas na subserviência e, qualquer coisa para além disso, como colocar nossos projetos de vida em primeiro plano, é um grande desrespeito à cisgeneridade.

Talvez por isso mesmo, o assunto desta semana seja um pouco desconfortável, e resulta de conversas com outras amigas, porque mexe com crenças e sentimentos nossos, seja você trans ou cis. O que estamos abordando aqui, é sobre as solidões bem construídas socialmente, mas melhor ainda, muitíssimo antes, bem planejadas para as pessoas trans.

Uma pessoa trans é egoísta ao planejar o seu futuro e o idealizar enquanto uma possibilidade de vida, porque para a cisgeneridade, nós somos uma contínua desavença entre prosperidade, calma, amor e esperança. Enxergam-nos – ou sempre nos enxergarão – enquanto alguém que não goza, mas que serve ao gozo do outro, e em outras palavras, isso quer dizer que ninguém nos imagina felizes, com amores e amizades, ou até mesmo estudando e sendo acadêmica.

Quase que religiosamente, junto às crenças supersticiosas de minha mãe, descobri muito cedo o peso de algumas palavras, que aprendi evitar usá-las e até mesmo querer não ouvi-las, para que não houvesse contaminação daquilo que há de bom em mim. Dessas palavras extremamente desconfortáveis aos ouvidos, “desgraçada” é a mais pesada de todas. E é justamente essa palavra que geralmente, todos pensam das travestis: são todas desgraçadas.

O ódio direcionado as travestis e pessoas trans – a transfobia-, nem sempre é ouvida, mas pode ser sentida no olhar, mesmo daquelas pessoas que dizem repetidas vezes nos amar. O amor verdadeiro vai para além de palavras e todas nós sentimos, seja perpassada pelo gênero e pela classe, como eu, seja perpassada pelo gênero, classe e raça, como amigas minhas, sempre salvaguardando as diferentes encruzilhadas. À todas nós, foram negados afetos verdadeiros, e por isso mesmo, não somos tolas ao reconhecimento do que é falso, e do que desejam conosco implicitamente.

Aqui, eu estou falando da fala dos olhos, daquela que não ouço, mas vejo nitidamente, do desejo de alguém que só me vê em des-graça, perturbada, atormentada, desoportunizada. Por isso, prefiro a companhia de outras travesti, ou ler e estudar, mais do que estar em companhia de alguém cisgênero para passear, conversar, ou beber em um bar. Por vezes, ouvi: “mas você não acha que você também se isolou um pouco das pessoas?”.

De certo modo, compreendo de onde vem isso, e do des-gosto que isso gera, do cis em relação à algumas pessoas trans consideradas menos “sociáveis”, ou em outras palavras, que não submete sua vida à cisgeneridade, para poder ser vista como legítima. Meu negócio mesmo, é com outras travestis, mulheres, homens e pessoas transgêneres.

Relegadas ao esquecimento e frutos desgraçados para a cisgeneridade, uma travesti que cuida da sua vida de maneira artesanal, sozinha, ou com outras travestis, mulheres, homens e pessoas trans, estudando e trocando conhecimentos, é compreendida como alguém egoísta, porque a cisgeneridade sequer imagina que por trás de solidão imposta, a partir de uma régua cisgênera, também há vida, gozo e comunidade.

Ainda nessa compreensão, tem gente cisgênera que nos trata enquanto curiosidades, e enquanto peculiaridades a ser conhecidas, oferece-nos “inclusão” desde que sejamos manuais rápidos de gênero e sexualidade, com um bom prefácio sobre o que passou em nossa vida pessoal, sempre com expectativas de relatos de desmantelo existencial.

Acho que toda travesti, em alguma medida, às vezes queixa-se da solidão, às vezes gostaria de ter mais companhias cis e trans em determinados momentos, e também, muitas vezes, sente-se sozinha pela compreensão que a cisgeneridade à tomou uma parte considerável das possíveis faixas etárias da vida, infância, adolescência, fase adulta e velhice, quando se chega à esta última.

Para muitas travestis, ao menos, ter saúde corporal, conseguir pagar suas contas, comer, beber e dormir um pouco, em uma realidade nacional que nada nos proporciona, já parece bom. As travestis com mais sorte, tem trabalho e carteira de trabalho assinada, e vive bem com o que ele lhe proporciona, outras também estudam, mas todas, as mais e menos afortunadas, são vistas como desgraçadas por não corresponder ao gênero registrado ainda ao nosso nascimento.

Seríamos desgraçadas em relação ao quê? À família de pacto biológico? À sociedade normativa? À expectativa de que toda travesti seria um bom homem opressor, e todo homem trans seria uma boa mulher submissa? Nesta perspectiva, então, realmente, somos desgraçados, não somos pessoas que deram certo. Ainda bem!

Acredito que a chave que vira o entendimento do que estou querendo dizer, para a tomada de algo sentido no olhar, é porque à nós, já que nada foi dado à conquista, tudo ainda é lutado, e “tudo”, significa o “básico” para poder sobreviver, inclusive o respeito ao nosso próprio nome, sempre visto como nome fictício.

Ora, para quem foi negado todos os espaços de vida social, a diversão ainda é poder sobreviver, sendo essa “diversão”, uma necessidade. E é nos divertindo da melhor maneira possível, sem perder o bom humor.

De certo modo, não sei se faço-me entendível para quem é cis e está lendo, mas para pessoas trans, que assim como eu, que foi possibilitado tão pouco, certamente compreende que a nossa diversão ainda está longe do que é diversão cisgênera, porque a nós, foi retirado a possibilidade de viver. E isso só comprova tudo o que eu disse, lutamos por representatividade.

Se digo não para os desejos de desgraça que uma parte esmagadora da sociedade tem conosco, que faz sentir-nos enquanto um passatempo – e se o faz, é porque o estamos sendo –, isso já é o início de um fim ao ciclo que tentam a nós, impor.

Mesmo que estejamos inseridas em um contexto social que nos marginaliza, que invisibiliza nossa existência humana e que nos impossibilita de vários acessos, eu discordo veementemente que o projeto cisgênero de desgraçamento das travestis e pessoas trans seja de triunfo, e isso fica claro quando, entre as travestis, homens, mulheres e pessoas trans, a gente olha para o outro e sorri, troca conhecimentos e a esperança de um futuro, esperança enquanto verbo no infinitivo.

Se temos esperança, é porque há graça, e por mais que busquem destruir isso, é preciso ficarmos espertas, porque quando o conjunto de marginalizações faz com que uma travesti, mulher, homem e pessoa trans acredite que a vida já não tem mais graça, ele triunfou. Antes da morte física materializada, o cis-tema tenta incansavelmente, matar-nos subjetivamente, matar a sujeita e o sujeito de existe fisicamente, e lança-se ao mundo, a viver.

Por tudo isso, mesmo que usem contra nós, a ideia de um estereótipo de egoísta, por reaver o que foi nos tomado, não compactuando com a ideia de que, se nada à nós foi dado, é porque nada precisamos ter, cabe-nos então, sempre em paz conosco, continuarmos construindo graças.

Não precisamos ter as angústias que eles disseram que precisaríamos ter.

Continuaremos travestis graciosas.

Florence Belladonna Travesti

Travesti do mato, andarilha por sítios e criada por mulheres bisavó, mãe, tia e madrinha em São João do Sabugi - RN. Gosta do vento, de banho de chuva e rio. Ama doce de leite, provar sorvetes e bolos. Aventura-se por palavras lidas e escritas como quem beija o infinito, a própria liberdade.

2 thoughts on “Uma travesti que planeja seu futuro, sempre será uma travesti egoísta

  • 28 de novembro de 2020 em 09:43
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    Suas palavras são impactantes.
    Deixam-me sem palavras, mas chegam facilmente a minha alma.
    Você é uma fortaleza, Florence.
    Cis ou trans, temos muito o que aprender com você.
    Li, em algum lugar: o que existe de melhir dentro de nós deve está sempre em luta.
    A luta é de todas nós.

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  • 7 de dezembro de 2020 em 13:29
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    Parabéns pelo texto, Florence. Muito inspirador. Ele mostra a força das travestis. Obrigado por compartilhar suas convicções. Realmente, parabéns.

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