Há um TEATRO CU a falar?
Será que já é possível falarmos de um TEATRO CU? E o que poderia ser esse TEATRO CU? Seria esse TEATRO CU, que ainda não sabemos se existe ou o que é, a realização da pretendida busca por uma linguagem pós ou antidramática? Parafraseando Preciado, seria uma espécie de “manifesto contrateatral”? Seria um teatro capaz de superar a representação, tal como almejado por Artaud, um teatro do acontecimento, da diferença, da multiplicidade e da pura presença, capaz de tocar a própria vida? Será que o TEATRO CU finalmente realiza essa espécie de supertarefa da cena teatral do século XX, que perdurou até o início deste século XXI?
Neste momento, no qual chegamos à segunda década deste século, já sabemos que a Teoria Queer floresceu e ganhou esse nome ao tomar para si e transformar o que era xingamento heteronormativo em grito de guerra. Em português, poderíamos traduzir o termo como Teoria Bicha, Teoria Baitola, Viadinha… Teoria Cu. E o que também já sabemos – por meio de teóricos de centros hegemônicos como Preciado e Butler, mas também de brasileiros como Larissa Pelúcio, Helena Vieira, Richard Miskolci, entre tantos outros – é que essa teoria, por excelência, é antiteoria, teorização do que não seria possível teorizar, produção de conhecimento à margem, realizada por sujeitos à margem, abjetados. É de dissidência que se trata, e não de subversão. Implosão, seguida de reconstrução. Proposição e construção de outros sistemas, em oposição às hegemonias vigentes.
O que talvez seja possível verificar agora é que, até poucos anos atrás, o teatro limitava-se a embaralhar e curto-circuitar as operações entre representação e performance, drama e acontecimento, arte e vida. Toda uma cena irrompeu-se em busca de atingir não a vida como realidade exterior, mas essa “espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam” (ARTAUD, 2012, p.8). Porém, faltava a essa pretensão de representação do irrepresentável uma dimensão ética a permear suas escolhas e operações. Faltavam, talvez, as dimensões molecular e micropolítica.
Neste sentido, poderíamos dizer que esta cena dita contemporânea (produzida, digamos, desde os anos de 1980), pós-moderna, pós-dramática, pós-pós-moderna, teatro do real – ainda operava sob influxo das reverberações acerca do colapso do teatro moderno, nascido no final do século XIX, que nos ensinou a ordenar o mundo a partir de determinadas propostas realizadas por gênios criadores (essa maldita herança do Romantismo da qual temos eterna dificuldade em nos libertar). Assistimos, portanto, nessas últimas décadas, ao colapso dessa tendência autorreferencial moderna de centrar seus esforços na produção de múltiplas formas de concatenação de sentidos, que produzem tanto tentativas totalizantes de ordenação do mundo, quanto as expressões da chamada arte conceitual, fechadas em si mesmas, racionalizantes, experiências inteligentérrimas da intelligentsia. Em todos os casos, por maior que tenham sido os seus esforços ao longo do século XX em forçar a sua abertura e explodir as preponderâncias operadas por instâncias como drama, encenador, ator ou o próprio edifício teatral – o teatro ainda seria uma tecnologia de produção de sentidos ordenados a evitar, permanentemente, multiplicidade e diferença.
Oram vejam só, estamos cientes agora que, em concomitância com o nascimento deste teatro moderno, também no século XIX, assistimos ao surgimento de aparatos de controle sobre o corpo. É neste momento que veremos o estabelecimento das divisões binárias entre heterossexualidade e homossexualidade, que irão determinar a cartografia sexopolítica vindoura (como nos aponta Preciado). Como forma de estabelecer o controle de certas etnias sobre outras, o sistema colonial irá deter os meios de vigilância e reprodução da vida em si. E assim constituir as ficções biopolíticas necessárias para consolidar seus sistemas hegemônicos. Brancos, europeizantes, heteronormativos , falocêntricos… Será então que não caberia perguntar: teria o teatro moderno servido como mais um dispositivo disciplinar do Estado-Nação?
Evidentemente, os sistemas de controle estão agora em crise. Nunca antes observamos tamanha derrocada dos paradigmas coloniais europeus. O que nos traz a oportunidade de pensar, produzir e propor outras possibilidades de conhecimentos, epistemologias e saberes que desestabilizam a norma. É de uma ética que se trata, a projetar refuncionalizações, deslocamentos e redesenhos, visto que a ideia de arte pela arte nos conduz a uma irrecuperável desconexão com a vida (já vimos esse filme e essa peça). É preciso reconfigurar corpos e dispositivos e reescrever as ficções que nos trouxeram até aqui. Mais do que denunciar, implodir ou recusar as formas de poder instauradas e entranhadas, é preciso pensar o que pode esse TEATRO CU, qual a sua possibilidade de multiplicar sentidos, desterritorializar funcionalidades, promover trânsito.
Esse TEATRO CU, portanto, seria aquele que coloca em cena os sujeitos subalternizados, periféricos e abjetados. Que ousa produzir outras formas de ação, resistência e de existência. Que é capaz de denunciar esta zona de indiferenciação entre ficções políticas, biopolíticas, midiáticas, científicas, religiosas e simbólicas. Que se coloca como mais um discurso nesta arena de narrativas e representações. Um discurso tão válido e pertinente como os demais, e assim também denunciando que esta zona ficcional é inerente a todos os discursos. Não é uma questão, portanto, de identificar as narrativas mais verdadeiras ou menos verdadeiras, reais ou mentirosas. Mas de admitir a existência, em concomitância, justaposição ou conflito, de uma imensa, múltipla e incalculável gama de possibilidade de invenção. Se fossemos capazes de imaginar uma realidade em que não houvesse os sistemas hegemônicos de vigilância não haveria limites para as linhas de fuga, que se reproduziriam infinitamente.
O que arte faz e pode fazer, por conseguinte, entre outras de suas atribuições fundamentais, é nos lembrar que tudo é invenção. Nos restituir esse lugar do qual um dia fomos arrancados onde os saberes podiam coexistir sem hierarquização. O teatro é então, por excelência, esse lugar onde podemos exercer nosso pleno direito de representação. Não se trata mais de superar a representação, mas de abolir os sistemas de representação hegemônicos. Nesse sentido, a busca artaudiana por um fora da linguagem, abraçada pelo teatro dito contemporâneo, não passaria de um falso problema, um pesadelo – branco, europeu, masculinizante e assim por diante.
Os nossos atos de performatividade individuais no mundo sem dúvida são capazes de alterar os modos vigentes de vigilância. No teatro, porém, espaço de encontro e acaso, somos levados a produzir e reverberar esses atos de significação coletivamente, como um ritual. É nele onde forjamos racional e irracionalmente não apenas aquilo o que somos, mas as transformações sobre as quais ainda somos incapazes de falar. Suponho que o TEATRO CU seja o atual devir-outro do nosso teatro. Isso que ainda nos escapa, o nosso atual, e aquilo que ainda iremos nos tornar.
Há pouquíssimos anos atrás, discutíamos – totalmente preenchidos por nossas referências e saberes colonizados sem os quais os sistemas de controle jamais teriam nos permitido chegar até aqui – se chamaríamos esse teatro, pautado por fluxo e trânsito de, por exemplo, teatro rizomático. Cheguei mesmo a utilizar o termo deleuziano num congresso acadêmico. Pela minha boca afora, ainda agora, enquanto escrevo esse texto, escorrem palavras deleuzianas, foucaltianas, laucanianas… affe. Nos foi amputada a nossa própria língua, sem a qual eu mesmo, por debaixo de todas essas camadas, mal consigo falar.
Pode até nos parecer óbvio, agora, embora ainda esteja longe de ser, que podemos e devemos chamar o despontar dessa cena por nomes como teatro Subalterno ou teatro Abjeto. Estão mais claros os impedimentos e diferenciações pré-estabelecidos que jamais permitiram que certos corpos e sujeitos subalternos, abjetos, periféricos, desviantes, pudessem falar. Também sabemos da importância performática do ato de fala e nomeação, que instaura, irrompe, acontece, desterritorializa, ao mesmo tempo em que também ritualiza, retorna, reterritorializa, arborifica, estrutura. Gosto mais ainda de imaginar, preciso confessar, que possamos encher a boca juntes pra dizer, simplesmente, como se fosse mesmo um ato simples: há um TEATRO CU a falar.
Referências:
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
BUTLER, Judith. “Atos performáticos e a formação de gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista”. In: HOLANDA, HELOISA B. (org.) Pensamento feminista. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019 – p.213-234.
MISKOLCI, Richard. “Um saber insurgente ao sul do Equador”. Revista Periódicus, Salvador, Vol. 1, No 1: 2014, pp.43-67. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/10148
PELÚCIO, Larissa. Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil? Revista Periódicus, Salvador, Vol. 1, No 1: 2014, pp.68-91. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/10150
PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo, n-1 edições, 2017.
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Que análise rica! Me trouxe muitas indagações. Parabéns