Um post político que eu não sei por onde começar: os últimos dias foram os mais horrorosos que eu já vi

Eu, realmente, não sei nem como começar esse texto, dado o fato de que o que impulsiona é um apanhado de coisas que marcaram a minha história de vida, neste momento histórico. Coisas que não estão desconexas, mas que apareceram em desordem. Vou começar por fissuras identitárias, do reality show Big Brother Brasil, em um Brasil de quarentena (quase inexistente) e delirante, onde o meu primeiro ponto emerge de algo que acho descabido: nem toda pessoa trans na política representa avanço político para nós, em alguns casos, é um triste retrocesso.

O fato de o vereador de São Paulo, Thammy Miranda, ter declarado recentemente que iria processar[1] Lumena[2] (convido a ler minha última postagem aqui nesta coluna), uma das participantes do BBB21, por racismo reverso, por uma suposta perseguição à atriz Carla Diaz pelo simples fato desta última ser branca, me trouxe a lembrança de que, enquanto algumas pessoas trans penam em lutas, outras usam de seus privilégios para destruir, com más representações, esse movimento social.

É preciso afirmar sempre, NÃO existe racismo reverso, foi o povo preto que teve vidas arrancadas pelo sistema escravocrata moderno, e ainda hoje, perece frente ao Estado, que continua racista, e ainda está longe de ser democrático. Mas o que isso tem a ver com a questão trans, e o que a atitude racista de Thammy Miranda revela sobre desfavores políticos, dentro da comunidade trans?

Quando nos debruçamos sobre a história da transgeneridade, assim como a história da África e dos afro-brasileiros, compreendemos que a tração política do vereador Thammy Miranda (Partido Liberal – PL) frente a um processo de racismo reverso demonstra uma incompreensão, e sobretudo, uma fissura identitária, que desconsidera os processos históricos de violências que pessoas pretas e LGBTs compartilharam e compartilham, em momentos de vidas passadas e recentes.

Qualquer pessoa minimamente informada, sabe que não existe racismo reverso, mas tem outra coisa que me deixa incomodada, o Thammy enquanto homem trans político com falta de tato para compreender as questões de gênero, assim como de raça, revelando uma desestruturação semelhante as disputas de poderes de políticos cisgêneros.

As fissuras de grupo, onde uma pessoa LGBT gasta energia tentando construir problemas na vida de outra pessoa LGBT, por motivos impalpáveis torna visível o desfavor que o Thammy Miranda faz, ao não representa uma força política LGBT, onde, para se promover politicamente, toma para si uma performance normativa e conservadora, sem um pingo de empatia, sem o “pensar duas vezes” e promove um ataque à outra pessoa LGBT, mesmo quando um ataque é infundado. Isso me leva a crer sobre o quão são vigentes as disputas de poderes mesquinhos de alguns personagens muito específicos, que se gabam, como o próprio Thammy diz de “uma bandeira ambulante” dentro de grupos que perecem frente aos poderes hegemônicos que os marginalizam. Para tal, precisamos tomar muitíssimo cuidado para não generalizar uma pessoa trans por todas. Pelos olhos do afastamento, do preconceito e do desconhecimento de causas, muita gente toma o caminho mais fácil da generalização.

Todo homem trans, assim como as travestis e muita gente queer, são demarcados como a própria representação e performance monstrificada do gênero e da sexualidade, e mesmo que o Thammy não saiba disso, certamente ele sente, neste ocidente preconceito que a gente vive, o que me leva a pergunta do porquê de tamanha arrogância com outros LGBTs. Aliás, em casos muito específicos, essa é uma pergunta central que eu sempre me faço, o que leva uma pessoa LGBT agredir ou tentar prejudicar a vida de outra pessoa LGBT gratuitamente?

Mas o Brasil não para por aqui, reafirmando o que eu coloquei no título e aproveitando as questões de gênero, raça e uma fissura conservadora dentro de grupos marginalizados, o pano de fundo que está por trás do que está sendo tratado aqui. Várias ações políticas são desfavores para pessoas violentadas historicamente, esta semana foi dura, repleta de racismo recreativo e necropolíticas.

Os dias mais horrendos que eu já vi na minha vida, o avanço conservador emerge do espetáculo do ódio racial e de gênero e o que está por trás disso, neste momento, aqui no Brasil. Nos últimos dias, foi-nos revelado uma estrutura panóptica, racista e misógina muito mais complexa do que somente a eliminação de Karol Conká de um programa de TV, com 99,17% de mais de 285 milhões de votos e mais de 40 pontos de audiência[3], o que equivale à audiência nacional de uma Copa do Mundo. A quem serviu a hashtag #ForaKarol?

No Brasil de Jair Bolsonaro, nas últimas duas semanas, estamos vendo um desmonte das políticas e da segurança públicas de maneira brutal, onde houve decretos que passam a permitir o porte pessoal de até 6 armas de fogo para Forças Armadas, membros de magistratura e Ministério Público[4]. Agora eu pergunto: no país da carteirada, isso vai dar certo? Levando-se em consideração que esses campos de atuação profissional são esmagadoramente dominados por homens, eu temo a concreticidade que nos aguarda, uma realidade de sangue.

Ainda no governo Bolsonaro, a “cereja” desta semana volta-se à educação e saúde, ou melhor especificando, à retirada de investimento obrigatório dos municípios de 15% e 25% dos orçamentos[5], respectivamente, para poder retomar a política do Auxílio Emergencial. Escancaradamente, o Governo do Brasil acha justo a fome, a doença e o analfabetismo. Tira recursos permanentes da Saúde e Educação, depauperados nos últimos anos, e encurrala o povo a essa troca injusta, para não passar fome, em meio a uma pandemia.

É aqui que entra o proveito racista da hashtag #ForaKarol, que tomou proporções gigantescas nas redes sociais, do desejo de 100% de rejeição de uma mulher preta. As grandes massas se engajam socialmente, muito mais, com o linchamento virtual de uma mulher preta, por causa de atitudes em um reality show, sendo compreendida enquanto arrogante, desejando mostra-la qual o lugar de rejeição que ela deve ter, enquanto no lado político, estamos de frente a um homem assumidamente matador, que nos encurrala em escolhas, decretos e PECs perversas, e nada é feito ou comentado. No Brasil, não se tem ódio do fascismo.

Assim como no início da pandemia, onde o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse que o Governo deveria aproveitar todos os jornais nacionais voltados para as informações sobre a Covid-19, e “deixar passar a boiada”, referindo-se ao facilitamento do extrativismo agropecuário, a necropolítica neoliberal de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes aproveita-se muitíssimo bem as ondas do momento, para bem-suceder implementações de morte, enquanto o povo prefere gozar com o racismo e misoginia, do que evitar com toda radicalidade o empobrecimento e fome no, durante e, pós-pandemia.

Dessa vez, usa-se do racismo estrutural, sem que, sequer, o grande povo perceba essa estratégia, onde o racismo é um mecanismo pessoal, midiático e político, que jamais opera sozinho. Sempre serviçal, sacia o desejo de lucro e sangue de todas as estruturas que sabem utilizá-lo em seu próprio proveito, seja com o grande desejo de mostrar a uma mulher preta seu lugar de rejeição, seja aproveitando-se desse desejo popular e desfocar a atenção para implementação de armas, fome, doença e desistência educacional, fortalecendo a exploração do trabalho informal, o neoliberalismo do “livre comércio”, e o analfabetismo futuros.

Neste país, o povo se articula e odeia muito mais uma mulher preta, do que um presidente assumidamente matador. Para não morrer de desgosto, todo dia eu acordo desejando, quase tristemente para mim mesma, que um dia eu vou sair, viver em outros ares, outro país, em qualquer lugar, menos no Brasil. Para quem é antimisógino, antifascista, antirracista e anti-LGBTfóbico, o Brasil tornou-se o inferno na Terra. E este inferno fascista, dos últimos dias, foi a coisa mais horrenda que eu já vi.

[1] https://istoe.com.br/thammy-miranda-ira-processar-lumena-do-bbb21-por-ofensas-a-carla-diaz/ (Acesso em 23/02/2021)

[2] http://lalidis.com.br/index.php/2021/02/19/nao-sou-da-teoria-sou-da-pratica/ (Acesso em 23/02/2021)

[3] https://teleguiado.com/televisao/2021/02/globo-passa-dos-40-pontos-de-audiencia-com-eliminacao-de-karol-conka.html (Acesso 23/02/2021)

[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-02/governo-altera-decretos-para-ampliar-acesso-armas-e-municoes (Acesso 23/02/2021)

[5] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/02/23/senado-proposta-de-fim-do-piso-de-saude-e-educacao-dificulta-pec-que-viabiliza-auxilio-dizem-lideres.ghtml (Acesso 23/02/2021)

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Florence Belladonna Travesti

Travesti do mato, andarilha por sítios e criada por mulheres bisavó, mãe, tia e madrinha em São João do Sabugi - RN. Gosta do vento, de banho de chuva e rio. Ama doce de leite, provar sorvetes e bolos. Aventura-se por palavras lidas e escritas como quem beija o infinito, a própria liberdade.

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