Sobre a história da Igreja Católica não abençoar uniões LGBTs, o que devemos levar em consideração?
Aos 26 anos, qualquer travesti pode ser considerada uma senhora de meia-idade, dentro de uma organização social que nos generifica e penaliza desde crianças, aqui está um processo de encarnação em nós, do próprio gênero. Pensando nisso, ter um corpo pressionado para algum lugar, longe do nenhum lugar que uma travesti vive desde criança, fez-me “amadurecer” mais cedo em relação a determinados processos de vida que, para muita gente, é totalmente alheio. Todas as pessoas têm gênero, mas nem todas compreendem como o gênero se articula em sua vida, diferente de uma travesti e crianças trans, que desde o ensino infantil, lidam com esta demarcação. O não-lugar que me acompanha quase sempre em paz, doce, e livre, mesmo que um dia já tenha ficado muito angustiado, define algo ímpar sobre o desejo de viver autenticamente, o não ter medo de ser si próprio desejante frente a alguns outros, temerosos disso.
Tenho refletido um pouco sobre os não-lugares, não-lugares não somente sociais, mas um não-lugar mais íntimo, aquele de quando olhamos no espelho… o não-lugar de não ter um lugar, mas sentir-se presa em qualquer lugar, e ao mesmo tempo, como uma vertigem repentina, sentir que pode ter todos os lugares que quiser. Cada segmento da sigla LGBT vive em um não-lugar muito particular, fora do calendário católico cis-hétero da construção de uma família “tradicional”, de casar, ter filhos e depois ser cuidado pelos filhos na velhice. Três momentos clímax que marcam o calendário cis-hétero compulsório. O não-lugar ao que me refiro também é uma proposição de tempo.
Na distopia LGBT, denuncia-se quando cada pessoa deste segmento se depara com locais e águas turvas diferentes, de um grupo social em apuros, nos campos afetivos e materiais de clímax históricos que transitam ao redor de nossa única referência social desde pequenas: os bons costumes e a religião. Enquanto processo de normatividade naturalizado, os bons costumes, a religião e o pisar neste pedaço de chão colonizado, faz com que as pessoas vivam momentos de abolição sexual e de gênero, uma liberdade radicalmente livre, no sentido afirmativo e intenso de um pleonasmo. De tanto gritar liberdade, torna-se um desejo autêntico, para muita gente, que os termos LGBT e liberdade sejam pleonasmo de uma mesma coisa, do verbo viver.
Em uma organização social que nos desqualifica, nos adoece, nos objetifica, desvaloriza nosso trabalho, nossos afetos, diminui radicalmente nossa expectativa de vida, tornando-a expectativa de morte, especialmente às travestis, com estatísticas de 30 anos, os sistemas distópicos tornam-se claros, ao passo que sobrevivemos. É sintomático, em grande parte da comunidade LGBT, o sentimento de não-pertencimento social.
Mesmo em águas profundas, às vezes congelada em extratos, cada LGBT arranja meios de se divertir e construir seus jarros de flores. Às vezes, mesmo duramente submersa, envolta ou ancorada em preconceitos e deslegitimação, rodeado de sentimentos de tristeza, pela sociedade que temos, qualquer construção de um jarro de flores para alegrar a vida, torna-se mais especial e significativo, trazendo arranjos belíssimos aos olhos. O termo “flores” aqui, refere-se metaforicamente a histórias de vidas de perseverança e sobrevivência autêntica, mesmo que nossa sociedade normativa não coloque nada ao favor. Com cada pessoa LGBT construindo seu próprio arco-íris para tornar nossa sociedade um local mais bonito do que está, ainda muito violenta em relação aos gêneros e sexualidades, quem seria tão rude que não se importaria com isso?
Estamos em outros tempos, não só os LGBTs, mas nossa sociedade também, como um todo. Cada vez mais, torna-se inadmissível a subjugação das dores outras, e que alívio. Nesse processo de construção de compreender as dores de uma distopia, está a importância da comunidade. É a comunidade que é nossa família, somos famílias em comunidades.
Um dos primeiros enfrentamentos advém de um não-lugar de adaptar-se socialmente em famílias comunitárias construídas, em guetos construídos por eles para nos localizar. Duas chaves de virada: guetos construídos por eles, para nos localizar, e guetos ressignificados por nós, enquanto uma grande família salutar. A virada é a ressignificação do que chamaram negativamente de gueto.
Mesmo na tentativa de nos localizar, eles não contavam que também tomaríamos esses guetos para nos proteger. Criadas desde pequenas dentro de uma padronização familiar cis-hétera-religiosa, muitas de nós também acabou não percebendo o quão é perigoso desejar e sofrer por um padrão de família que não nos contempla, e pior, nos rasga como se fôssemos panos em desuso, que ao primeiro sinal de “trejeito”, somos expulsas de casa, e depois, na dor ao perceber que a suposta sacralidade da família, do amor incondicional não existe, quando, muitas vezes, ousamos dizer aos nossos progenitores que não são eles que ditam nossa vida sexual e de gênero. Exatamente, esse sistema cis-hétero-religioso compulsório esbarra no absurdo de querer ditar a vida sexual e afetiva de alguém.
Colocando em dúvida e dor até o nosso nascimento, nesse processo de desterritorialidade, muitas acabam construindo crenças na errância, e isso me corta o coração. Quando uma pessoa LGBT é expulsa de casa, sua primeira referência de família, que deveria ser aconchegante, acolhedor, é totalmente estraçalhada, e torna visível não somente uma estrutura preconceituosa que detesta as diferenças, mas denuncia um fim de estrutura performativa que uma família normativa sempre deseja manter. Performances familiares tóxicas, por sinal, que amargam pessoas LGBTs muito antes da tragédia de uma expulsão.
Nos rumos da errância, há muita humilhação, angústia, desespero, e ao mesmo tempo perseverança, e por vezes, tristes suicídios. Somos ensinadas desde pequenas que não é certo sermos nós mesmas… como é possível reverter isso? É possível rever isso?
Na minha experiência, ainda durante a graduação em História, resolvi estudar para salvar a mim mesma, e então ir pelo ativismo que pudesse salvar outras pessoas também. No trabalho de contato direto com pessoas LGBTs, com diferentes realidades, muitas materialmente e psicologicamente precarizadas, eu aprendi profundamente sobre o que é humanidade, sobre o que é ser humano frente e ao lado uns dos outros, sobre algo muito maior, o afeto.
Mas qual é o ponto? De tudo o que eu disse até aqui, de todos os processos de subjugação e adoecimento, de expulsão de pessoas LGBTs de casa, a performance cis-hétera, do se autoquestionar do próprio nascimento, até o suicídio, em casos não incomuns… tudo isso, tem um pano de fundo de mentalidade religiosa, de séculos, já em direção a um milênio e meio, em que a Igreja Católica, formou o modo de pensar da sociedade civil, seja pela própria Igreja, seja pela influência que exerceu sobre a medicina, o direito, a educação, etc.
Nesta última semana, fomos surpreendidas com um documento do Vaticano que eu, particularmente, achei desnecessário ser publicado, a reafirmação de que a Igreja não abençoa uniões LGBTs. Levando em consideração que nenhuma frente dos grupos LGBTs buscaram meios oficiais para perguntar à Igreja Católica, se ela poderia abençoar nossas relações, qual foi a necessidade da reafirmação de desprezo? Há uma dessintonia.
Aqui, falo por mim: eu não quero a benção de quem não aprendeu a ser humano. Eu não quero a bênção de uma instituição cuja as paredes, o piso, o teto e o sino, foram lavados com sangue, de uma instituição que em sua gestão formativa de pessoas, não aprendeu a combater o escavamento de dores alheias, pelo preconceito. Eu não quero a bênção de uma instituição que privilegia homens cisgêneros, em sua maioria brancos, que não têm responsabilidade com as palavras direcionadas a grupos que já sofreram muito, durante a história da humanidade, cuja muitas dores desses grupos marginalizados, foram construídos pela própria Igreja Católica. Simplesmente não me faz falta.
A bênção que eu quero é das travestis, as que estão às esquinas, das maquiadoras, das cabeleireiras, manicures e pedicures, das faxineiras e cozinheiras, das que se divertem comendo, bebendo e gozando com seus parceiros e parceiras ou sozinhas, das revendedoras autônomas, das que, por medo do batismo da violência e marginalidade banal, recusam-se a perder completamente sua dignidade de pessoa humana e constrói coragem para conquistar locais outros de sobrevivência, locais outros alheios, espaços de poder que até pouquíssimo tempo eram raros de se ver travestis. É por essas eu quero ser abençoada, porque é nelas que eu compreendi o que é ser humana. Foi nelas que eu compreendi que é divino viver e lutar para continuar viva, digna de viver, de querer ser feliz e compartilhar alegrias com outras pessoas. Tudo isso, apesar das instabilidades socioeconômicas, de trabalhos que frequentemente são subjugados e mal pagos, de expectativas de morte altíssimas, e de mentalidades preconceituosas, muitas das quais a instituição católica corroborou na construção.
A Igreja Católica não nos deve bênçãos, enquanto instituição que por séculos, e ainda hoje, não perdeu a oportunidade de deixar explícito o desprezo por alguns grupos, o que ela nos deve é ética. É o que a parte preconceituosa da Igreja Católica precisa saber, que dívida histórica não se paga com “morde e assopra”, ora diz respeitar e amar o próximo, ora diz que nem todos dizem ser amados.
Mas o que acontece em Roma nem sempre fica em Roma, e aqui farei um comentário rápido, que poderei voltar em outros momentos: o discurso da Igreja de base europeia, chega no Brasil de outras maneiras. Mesmo que ainda estejamos falando de um local antiquado de pensamento de uma parte social da Igreja que mantêm-se conservadora e toma seu fim trágico com o passar do tempo, o descrédito, aqui neste país, há uma disputa de poder que envolve algo muito pior. O desejo de desestabilização social das comunidades LGBTs pelo cultivo ao preconceito, também é um “fogo cruzado” entre Igreja Católica e igrejas neopentecostais, uma disputa de poderes por capitais econômicos e mentais.
Se por um lado a Igreja Católica perde espaço, mesmo reafirmando sua posição de conservadora, por outro, quem vem se alargando massivamente, neste país, são as igrejas neopentecostais, que contribuíram massivamente para a eleição de Jair Bolsonaro, e que estão síncronos com vários discursos de ódio.
Não tenha dúvidas, todo e qualquer discurso de rejeição e de ódio a grupos LGBTs vindos de qualquer religião, é uma disputa por captação de poder apelativa as mentalidades preconceituosas. Levando em consideração a história da humanidade que nós temos no Ocidente, processos de formação do povo e dos preconceitos, a Igreja Católica e as igrejas neopentecostais sabem exatamente quais palavras usar para verter mentalidades preconceituosas em seu favor, isso porque cada pessoa é uma força política.
Se por um lado, a Igreja Católica não consegue acompanhar o desejo de inclusão social do povo, que sabe muito bem o que são suas injustiças sofridas, por outro, as igrejas neopentecostais aproveitam-se para rebuscar os discursos autopunitivos.
Via de regra, a performance antiquada do conservadorismo à diversidade da vida humana, portanto, indelicada às dores diversas, já não cabe. Mesmo que estejamos em apuros, neste momento, eu realmente acredito que estamos em um novo momento histórico, que na massividade dos smartphones e da comunicação imediata, que forma e informa, cada vez se dará menos espaço para materiais sem conteúdo. As pessoas estão cada vez mais sabidas de que preconceito não tem fundamento.
Na adolescência, vovó dizia-me frequentemente: “todo pensamento é torto”. Ela dizia-me no sentido de que alguns modos de pensar são pouco viáveis. Mas depois de adulta, passei a compreender melhor a sabedoria dos ditados populares usados pela minha bisavó. Ela tinha razão, até alcançarmos a maturidade para conseguir ver nossa realidade com clareza, demora um tempo de vivência. Quem já está mais “esperta” com as questões que circundam nossas vidas LGBTs, a “historinha” do Vaticano, da semana passada, não passou de “jogar farinha no ventilador”, para captura de capital de mentalidades conservadoras. Conservadorismo que usa muito bem a história, cria suas narrativas e preconceitos, sua ciência, suas feminilidades e masculinidades, tudo isso enquanto caminhos que devem ser atraídos e seguidos restritamente.
A Igreja católica, composta por homens completamente cisgêneros, quase totalmente branca, e sustentada pela sociedade civil, nunca sentiu a necessidade de “amadurecer”. Continuar com pensamentos tortos, inconvenientes e agressivos que não cabem em nada que vá contra a dignidade humana. As LGBTs que lidaram com processos de marginalizações que fizeram-nas sofrer com os preconceitos presentes nos modos que algumas religiões pensam sobre as vivências de gênero e sexualidade, já sabem há muito tempo como “toca a fita”, e muitas querem é distância, ou preferem não ter religião.
Vovó acertou duplamente, pensar pode se dar por vias tortas, não objetivas, mas este não deve ser tortuoso, no sentido figurado de sofrível. Porquê algo torto seria ruim? Pensar tortuosamente é lançar-se livre, e quando achei que poderia enxergar com clareza, me deparei com emaranhados de realidades e coisas emaranhadas, nestas terras brasileiras que por vezes, colocou-me extasiada, e às vezes, estarrecida. O que não posso deixar, é deixar discursos inconsequentes falem asneiras que prejudiquem as sagradas vidas marginalizadas que aprenderam pelo sofrimento, o que é a humanidade.
Pode ser que haja muita gente LGBT que deseje casar no altar de um padre, e ter suas relações abençoadas nas mesmas métricas que faz um casal cis-hétero na Igreja, e eu respeito, mas levando em consideração nossos cenários culturais, acredito que isso ainda será um sonho muito distante.
Mesmo assim, apesar de tudo, que possamos continuar lutando para que dívidas históricas sejam pagas, e ter ética é o primeiro passo, para a dominação de qualquer tipo de violências, e não abominação de grupos de pessoas.
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