Brandon Teena, inumeráveis pessoas trans e eu: tecer uma outra história para o conservadorismo de contextos citadinos interioranos e rurais
Coragem. Coragem é uma palavra que, à força, foi colocada sobre as travestis. Não porque gostaríamos sempre, de sermos nós, as que batem no peito o ensejo de fazer, mas porque o fazemos pela falta de oportunidade confortável de existência social. Logo, o que nos resta, é “bater a mão na mesa” em reafirmações diárias.
O escrito desta semana emerge a partir da lembrança de outras travestis que já não estão mais neste plano físico, que desde muito cedo, na lida com os olhares esquivos, sejam de desejo, desconfiança, ódio, medo, ou tudo isso junto, acabaram por perecer, em cidades pequenas e contextos rurais.
No caso de cidades pequenas e contextos rurais, assim que há a iminência de pessoas LBGTs nesses interiores, adolescentes que passam a descobrir seus gêneros e sexualidades, suas experimentações e trejeitos, a própria cidade interiorana é quem desfaz o “armário”, colocando em xeque as existências dissidentes, e impossibilitando que alguém dissidente viva seus desejos livremente. Foi assim comigo, e é assim com outras pessoas.
Em contextos interioranos e rurais, os olhares de vigia sempre estão lá, atentos e espiantes, prontos para algum proveito ou para denunciar. O medo do estranho que causa medo, raiva e desejo, ao mesmo tempo, se organiza em tons de sujeição, submissão e às vezes, aventuras e relacionamentos duradouros, mas sempre às escondidas e extremamente reprimidos, ainda são poucas as pessoas de gêneros e sexualidades dissidentes que falam abertamente sobre isso em cidades pequenas. É nesse cenário, que as descobertas sexuais tomam normatividades repressivas entre papéis sexuais e de gênero, compondo uma grande confusão acerca de desejos, reduzindo-se as relações em genital e sexo.
A sexualidade é escanteada, dando-se naturalização à relação binária sexo/prática sexual. Enquanto as bichas pintosas tão logo são definidas como as passivas que “querem ser mulher”, a travesti é definida como lasciva, imoral e perigosa às famílias, aos maridos e as crianças, em especial, aos meninos. Há um terror generalizado e endêmico acerca das feminilidades. O que há de ruim, afinal?
Outro dia, uma senhora, quase machucou gravemente o pescoço do filho, virando a cabeça da criança abruptamente com a mão, para que ele não me visse passando na rua da frente. Foi assim comigo, é assim com outras travestis.
Além disso, na composição social de lugares pequenos, os olhares também se voltam aos nossos familiares, os olhares se articulam sedentos. Nesses contextos, alguém de sexualidade e gênero dissidente é considerado uma falha da família, que deve ser penalizada pelo escárnio, colocando abaixo uma estruturação comum em municípios de economias rurais, onde muitas vezes, os chefes de família não têm muito mais do que a honra da masculinidade e as palavras para oferecer.
No êxodo rural queer, a única possibilidade de resolver o problema é expulsando ou reprimindo, por isso mesmo é que cada passo dado por alguém estranho, chega aos ouvidos das famílias, que geralmente conservadoras, reprimem seus diferentes, colocando-as desgarradas rumos às capitais. É assim com muitos, mas não foi assim comigo, no quesito “família biológica e conservadorismo”, muitos se surpreenderam e se afastaram de nós, pela surpresa de não imaginarem que uma mãe poderia tratar uma travesti enquanto filha.
Mesmo assim, segue-se. As parafernálias do conservadorismo não param por aí, as penalidades dão voltas em firulas quase pirotécnicas, escondem-se em ruelas, becos, prédios, pistas, caminhos de terra, casas de barro, açudes, barreiros, escolas, igrejas, veredas e lajeiros. O conservadorismo persegue punitivo, mas come com os olhos, são nos lajeiros, as descobertas sexuais dos sertões queer.
Também colocam-se surpresos quando percebem que nem sempre o ódio explícito e o ataque direto é eficaz. Aposta-se na corrosão, que como respaldo eficaz e sutil, não precisa dizer ou direcionar nenhuma palavra, e todas as apostas voltam-se na construção de impossibilitar qualquer oportunidade de sustento. É pelo bolso que matam as travestis e jogam-nas às ruas e em migrações país adentro e afora.
No contexto interiorano, mais do que nunca, torna-se uma estrangeira de dentro declaradamente. Vista com desconfiança, mata-se as identidades locais, identificações ainda dos tempos de criança, e desterritorializa-se pela raiz. A identidade local matada, nessas dissidências de gênero, também mata a cidade, dando fim a ideia de “origem”. Sem cidade e sem território, nossa referência passa a ser o mundo.
A ovelha dissidente torna-se e toma-se em desejos grandes demais para um local pequeno demais, passa-se a não ter mais os parâmetros de outrora, o mundo assusta uns, mas é a liberdade de outros. Ovelhas dissidentes com duas únicas referências: ela mesma e o mundo, frente a frente, prontos para ser tomados em corridas, como quem tem pouco tempo, tomando-o para si, se dispondo-se a domar algo, ainda sem nome e sem direção. Já não é mais a estranha e o mundo, mas sim o mundo estranho e a estranha que já não precisa mais falar de si. Migrar, torna-se uma aventura de sabores, aprendizados e, às vezes, até algumas saudades, mas nada mais precisa ser explicado, só se sente.
Mas não para por aqui, a relação geográfica entre corpo, identidade e contexto interiorano estão, também é uma migração de si, de todos os modos e em determinados aspectos, em exímia sintonia. O contraste nos faz lembrar que existem, pelo menos, dois modos de enxergar essa geografia: o local enquanto o único mundo possível para muita gente, e o mundo enquanto local para poucos, dispostos a arrancar pela raiz, as bases culturais de nascimentos.
Nascer todos os dias, em outro lugar. E em outro lugar, e em outro lugar, e em outro lugar. Nascer. Tudo já estava aí, nômade, repetidamente envolto de locais, em amplitudes distintas, tanto nas capitais quanto nos interiores.
Um exemplo, foi o caso do assassinato do homem trans Brandon Teena, detalhadamente teorizado por Jack Halberstam, no livro “In a queer Time and Place: transgender bodies, sudcultural lives”, no qual o autor nos deixa claro a falsa impressão de que cidades pequenas são mais seguras. Para Jack Halberstam, enquanto as violências em cidades grandes acontecem avulsas, as violências contra pessoas queer em cidades pequenas e contextos rurais são sempre premeditadas, dando outros pesos aos nossos rumos.
Se em cidades grandes, encontrar culpados de violências contra LGBTs pode ser difícil pela extensão territorial e densidade habitacional, em cidades pequenas, a dificuldade é encontrar alguém que não acoberte os autores das violências, pelo fato de todas as famílias conhecerem umas às outras. Foi assim com Brandon Teena, em vias drásticas de assassinato, foi assim comigo em vias drásticas de humilhação, e é assim com outras pessoas trans por uma, outra, ou ambas as vias.
Foi assim comigo, em vias de humilhação. No domingo de carnaval de 2011, eu saí do sítio em pau-de-arara em direção à casa da minha avó paterna, na zona urbana de São João do Sabugi, no intuito de, no dia seguinte, sair no carnaval de rua, tradicional, por aqui. Naquela segunda-feira de carnaval, a praça pública estava cheia de gente, muitos homens e mulheres, muitas crianças jogando spray de espuma umas nas outras e nos adultos, a temperatura estava em mormaço, úmido e quente, e eu me encontrava próxima às escadas do coreto alto da praça. Eram entre 15h e 16h da tarde, quando eu cheguei. Algumas pessoas, quando me viram, começaram a rir, por eu ser alta, gorda e pintosa. Não tardou 15 minutos da minha chegada na praça pública, um rapaz pulou nas minhas costas e enganchou as pernas, pendurando-se em mim, quase derrubando-me no chão e rasgando minha roupa. Desvencilhando-me dele, gritei para ele ir se foder, enquanto todas as outras pessoas ao redor continuavam rindo. Decidi não ir embora, saí do centro da praça e sentei-me em um canteiro de plantas mais afastado, e passei mais alguns minutos, tomando um refrigerante, até a chegada de alguns amigos, e passar mais um tempo se divertindo. Depois, próximo das 18h, o sol já se pondo, o mormaço maior, mais úmido e de odores mais fortes, com o chão grudando nos pés, pelo derramamento de bebidas, decidi ir-me embora. Saindo próximo do coreto alto e passando pelo coreto baixo, onde tem um bar, avistei o mesmo menino, acompanhado de outros meninos e algumas meninas, numa mesa, e para minha surpresa, ele também me viu e gritou: “vamos pegar o viado agora!”. Em questão de segundos, dois rapazes me puxaram por cada braço e outro me empurrou pelas costas. Levaram-me até o banheiro masculino, cheio de lama e mijo, seguraram-me pelos braços em cruz e disseram “agora você vai ver!”. Passaram a perna nas minhas, derrubaram-me no chão e esfregaram minha cara no mijo a na lama, debaixo do mictório de aço. Tudo isso, enquanto todos riam como se fosse brincadeira.
No modo como riam, todos viam como brincadeira, enquanto eu estava com ódio, com a roupa, os cabelos e cara encharcados de mijo e lama. Sai do banheiro público gritando e ameaçando chamar a polícia, que estava ao outro lado da praça. Ao chegar nos policiais e contar o que havia acontecido, eles começaram a rir, e rindo, me seguiram até o banheiro masculino. Quando chegamos, os policiais e eu, os rapazes e as meninas da mesa do bar já haviam sumido. Sugerindo novamente irmos atrás dos rapazes, um dos policiais, de sorriso aberto, encerrou o caso dizendo: “deixe isso para lá, depois vamos atrás. O melhor que você faz é ir para casa e tomar um banho”.
Depois de tudo, fui para casa, enlameada e mijada. Tomei um banho, lavei os cabelos e fui dormir. Só um novo dia, para deixar aquilo tudo para trás. Foi assim comigo, é assim com várias outras pessoas trans.
A heteronormativa de cidades do interior opera muito mais pela vergonha, fazendo com que a experimentação de gênero de alguém torne-se constrangedora, e só mais tarde, fisicamente violenta, como em cidades maiores. Mesmo sem a iminência de risco físico imediato, todavia, isso não quer dizer que a retração do desenvolvimento subjetivo de pessoas LGBTs não se dê. Pelo contrário, é nos interiores rurais que as violências psicológicas reinam, e aí, mata-se a pessoa LGBT por dentro.
A imposição de frustrações psicológicas, a castração, é uma urgência, dentro das relações cis-héteronormativas e pessoas LGBTs, isso porque o processo de castração é o próprio esvaziamento do desejo de vida. Humanamente, qualquer pessoa definha, longe de algo que sacia os gozos, e não estou falando de sexo.
O modo como esses conservadorismos nos trata, é totalmente diferente, por exemplo, da própria cultura de acolhimento que encontramos com algumas pessoas e instituições LGBTs, uns com os outros. Acolhimento de quem já passou ou compreende as humilhações históricas passadas pela comunidade LGBT+, e busca ouvir atentamente, ou compreender o que os colegas da comunidade passam.
Tudo isso aciona muitas mortes subjetivas, sempre engatilhadas e prontas para o disparo, para aquelas pessoas LGBTs mais vulneráveis, que não têm acessibilidade e direcionamento humano anti-LGBTfóbico. Por outro lado, sem sombra de dúvidas, as pessoas LGBTs que assim como eu, compreendem ao menos algumas nuances das cis-héteronormatividade, e decidiram não migrar dos interiores para as capitais, sabem muito bem dos galhos ríspidos aos quais nos equilibramos. Além de nos equilibrar nesses passadiços, é preciso dar as mãos e puxar mais gente.
Os processos que conservam as pessoas LGBTs longe delas mesmas, e longe de suas sexualidades e descobertas das identidades, operam das maneiras mais baixas, fazendo com que pessoas LGBTs cheguem a acreditar que não pertencem a vida social, ou à própria vida. É aqui que os processos de migração dão-se por vias distintas, a viagem em si próprio, esvaziamentos identitários, e as viagens geográficas, que desembocam em fugas e alojamentos territoriais. Grande parte das vidas LGBTs são vidas em fuga.
A fuga dos territórios conservadores não é só uma fuga do interior para a capital, mas uma fuga material do preconceito, das opressões, das desconfianças, das relações adoentadas, das cobranças feitas por pessoas da família e da cidade rural, como se existir em plena potência da sexualidade e do gênero fosse o maior crime de uma pessoa LGBT, nesses contextos.
Aqui vale um comentário, sobre a urina, que especialmente, é algo interessante, sendo ela, usada pelos animais para demarcação de territórios. Se quando eu era adolescente, usaram o mijo para dizer que eu só servia para o riso, e não tinha um corpo merecedor de respeito, já adulta, outro episódio envolvendo mijo aconteceu comigo, desta vez, já na universidade e com as identidades e o ativismo muito bem escancarados publicamente: o ano foi 2017, próximo do fim do segundo semestre, em uma sexta-feira à noite, perto das 21:30h, e eu encontrava-me sozinha numa das mesinhas escuras, próximo da Diretoria da UFRN – Caicó, quando dois homens, falando sobre direito e contabilidade, sentaram na mesa da frente e passaram cerca de 15 minutos conversando. Na saída, uns dos homens andou até a árvore próxima da mesinha que eu estava, abriu o zíper da calça e mijou no tronco da árvore, com a rola de frente para mim. O outro homem teve um susto e disse desconfiado “porque você não mija no banheiro, rapaz, é aqui do lado”, e o menino que mijou quase aos meus pés, respondeu “eu mijo aqui mesmo, a gente já vai embora, é mais fácil”.
A diferença de 2011 para 2017, não há. Mudam-se os ambientes, mas, mais uma vez, a urina foi usada como a forma mais animalesca para a afirmação e demarcação de territórios que muita gente considera que eu não devo estar. Pessoas que eu sequer conhecia, ou sequer sabia o nome, se acharam no direito de me jogar na urina, ou de urinar quase aos meus pés, como se eu, absolutamente, não existisse em qualquer ambiente. “Nada” e “eu” estão em mim, “nada” e “eu” somos a mesma coisa.
Enfim, se o maior crime nosso é o desfrute do corpo, das formas em movimentos transeuntes, daquelas que passam e rebolam, que têm o corpo mole e macio, que chama a atenção pela delicadeza, então convoco todas, para sermos pungentes, pontas de lança em navalhas afiadas, que se não estiver em sintonia com o desejo do gozo de si próprio, a própria sintonia do corpo, então corta. Corta o conservadorismo de contextos interioranos e rurais, e olha para o próprio corpo e então ama-o. E mesmo que todos os contextos digam o contrário sobre nós, ainda assim, contaremos nossa própria história.
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