Areias de um cajueiro de domingo, sobre interiores e intimidades aconchegantes
Talvez a “belle de jour” nem sempre seja uma moça. Às vezes, é uma textura. Todos os anos, perto de começar o período chuvoso aqui no interior, na zona rural, começava a ficar mais frio pela madrugada adentro, e pela manhã aparecia um leve orvalho nas plantas e gramíneas, (se é que podemos dizer assim, aqui pelo Seridó?). Nesse período, sempre aos domingos, quase todos, haviam pequenas gotículas de água sobre as folhas das pequenas plantas e ervas, aos aceiros dos caminhos, dos quais às vezes, eu chutava com o intuito de molhar meus pés, mesmo sentindo frio pelo corpo todo. Esta era a cena em que eu… ou alguém comumente poderia me ver, nas andanças pelos caminhos de terra, caminhando entre minha casa e a casa da minha tia, em um sítio vizinho.
Nesses períodos de chuva, ao sul chamado de verão, e aqui de inverno, quase todos os domingos tínhamos o mesmo compromisso de colher cajus. Alguns domingos antes de começar a chover por aqui, por volta do ano 2001, quando eu tinha por volta dos 6 anos, eu saía bem cedo de casa, em caminhada por mais ou menos 1,5 Km, em direção da casa de minha tia. Caminhava sozinha pela estrada de terra, observando a paisagem.
Após o trajeto do local onde eu morava para o sítio de tia, cerca de 15 minutos de caminhada, dependendo do passo, a rotina quase nunca mudava: chegando, eu tomava café junto com dela, sentávamos à mesa da cozinha, ao lado do fogão a lenha, ela perguntava-me como tinha sido a caminhada, comíamos e saíamos rumo ao cercado, andando entre caminhos em veredas que começavam logo em frente a cozinha. Uma vereda ia para o cercado, outra para a barragem, outras para o poço artesiano, ao fim da barragem.
Em meio a paisagem de juremas que começavam a perder o tom cinza e ganhavam cores, em folhas verdes e troncos vermelhos, junto a uma cerca de arames, havia a pequena porteira de madeira. Eu prestava atenção ao verdinho das pequenas plantas, e aos sons que existiam na caatinga, do pica-pau, do galo-de-campina, das rolinhas… até chegarmos ao poço artesiano.
Sempre havia uma pausa para eu pegar uma pedrinha que tinha achado bonita, uma planta ou algo do tipo. O poço artesiano marcava o fim da barragem de lá do sítio, em extensão, onde as águas subterrâneas eram limpas e boas para uso, mas ainda um pouco salobras. O poço havia sido escavado em terras de barro ao lado de médios barrancos de areia, que recobriam os aceiros da barragem e se acumulavam ali, vindos das águas das chuvas, e também, possivelmente ajuntados da obra da barragem, no momento em que foi feita, ou de alguns anos quando, ao secar, novas retiradas de terra eram feitas para refazer a capacidade de represamento, debilitado devido a terra que descia rio abaixo, com as cheias. Houve um tempo que as cheias, aqui, eram em fevereiro.
Depois do poço, descíamos um aceiro da barragem e subíamos outro, com areia fria aos pés, numa diversão deliciosa em que eu pulava, para enterrar os pés na areia e deixar os grãos me deslizarem, em favor da gravidade, da descida. A textura fria e granulosa da areia, junto aos cheiros úmidos da barragem, me dissolvia completamente ao ambiente. Por alguns segundos, antes de seguir nossas caminhadas rumo aos cajueiros, ali era o lugar mais prazeroso do mundo, o lugar mais natural, intenso e selvagem, em que eu poderia existir delicadamente, enquanto criança.
Logo subíamos o outro monte de areia, para o outro lado do fim da barragem, e andávamos mais alguns ansiosos minutos, ao menos para mim. Os pés de caju podiam ser vistos ao longe, os quatro pés de caju em cima de outros montes de areia. Ao chegar, eu tirava novamente o chinelo, pelo prazer de sentir a areia granulosa embaixo dos meus pés, tão limpinha, fina e deslizando entre os dedos.
Enquanto tia e eu pegávamos castanhas de cajus ao chão, eu também aproveitava para sentar e balançar-me entre os galhos baixos, que tocavam a areia, que balançavam flexivelmente em suas formas retorcidas.
Quando terminávamos de pegar as castanhas ao chão, que seriam assadas em um outro momento pela tarde, rodeávamos novamente os cajueiros, desta vez, catando os frutos maduros. Em um bom domingo, colhíamos cerca de dois baldes de 10 litros, de caju vermelho e amarelo. Eram um balde de cajus bons para o nosso consumo, e outro de cajus já um pouco passados, para as vacas e novilhas soltas do roçado, que eram trazidas de volta ao fim da tarde, para o curral ao lado de casa. Nada se perdia.
Na volta, tia carregava um balde de cajus, e eu outro. Quando as mãos já ardiam, parávamos por alguns segundos para eu trocar o balde de braço. Fazíamos o mesmo caminho, de retorno, atravessando entre veredas, barrancos de areia e o poço d’água.
Na volta, o poço marcava o fim da manhã. Isso tudo acontecia antes das 8 horas. Já no poço, pegávamos uma mangueira encostada na caixa d’água, encaixávamos na torneira, enchíamos os baldes dos cajus de água, e trocávamos os líquidos duas ou três vezes, que escorria com as impurezas e restos de areia.
Também limpávamos nossas impurezas, depois de lavar os cajus, pegávamos a mangueira e nos banhávamos também. O fim da aventura matutina era a hora de tirar a areia do corpo e do alimento. Passávamos alguns minutos tomando banho, deixando que junto à água, escorresse a areia e o suor.
Havia domingos que levávamos uma sacolinha com um sabonete e um shampoo, para deixar na calçada da caixa do poço, prevendo que, na volta, tomaríamos um banho de “verdade”, para que não precisasse gastar mais água ao chegar em casa.
Chegando pela porta da cozinha, haviam só os pés sujos de terra, que logo limpávamos só jogando água. Tia pegava dois banquinhos, duas faquinhas de serra e uma bacia e um caldeirão, era chegada a hora de preparar os cajus para fazer doce, polpa e suco. Torcíamos as castanhas, que eram colocadas novamente ao balde de origem. Já os cajus, colocávamos na bacia.
Tão logo o serviço terminasse, tia colocava uma quantidade generosa de cajus em um prato, cortava e deixava à disposição para chuparmos. Eram cajus suculentos, doces, mas sem perder o sabor característico de “travo”, ao fim da mastigação.
Tia seguia com o ofício, virava-se em direção ao armário novamente, pegava uma tábua, cortava todos os cajus em duas partes e espremia-os com as mãos, para tirar o excesso de suco. Colocava os cajus espremidos no caldeirão, colocado sobre a mesa em espera. Ao mesmo tempo que espremia o excesso de suculências das frutas, para o doce, também conseguia extrair o sumo base do suco do almoço daquele dia.
Quando já havia uma quantidade suficiente de sumo para o suco e cajus para fazer doce, colocava o restante em sacos de 1 litro, amarrava-os e colocava-os para congelar. Naquele dia e nos próximos, não faltaria suco de caju para tomar.
Logo depois, ela adicionava alguns quilos de açúcar e água aos cajus separados no caldeirão, que eram colocados no fogão a lenha, para iniciar o processo de feitura do doce de caju em calda. Com a fervura, os cajus soltavam seus sabores, ao passo que a água aquecida derretia o açúcar, até fazer calda. Passava-se mais de hora, dependendo da voracidade que o fogo devorava a lenha embaixo da grelha do fogão.
No período de safra do caju, quase todos os domingos de manhã eram assim. No retorno para casa, pela tardinha, voltávamos andando pela estrada de terra, com sacolas nas mãos, com polpa de caju e doce para mãe e vovó. Foi nessa infância comunitária entre tia, mãe e vovó, que eu aprendi a ser em comunidade, uma maneira doce de dizer indiretamente que se gosta de alguém. Uma parte doce de mim.
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