Dissidências de gênero e sexualidade na literatura brasileira: uma antologia
Com a organização dos professores César Braga-Pinto e Helder Thiago Maia, Dissidências de gênero e sexualidade na literatura brasileira: uma antologia (1842-1930) será lançado, em dois volumes, pela editora portuguesa Index Ebooks, em 21 de junho de 2021. No primeiro volume apresentamos textos com personagens que perturbam as normatividades da heterossexualidade, enquanto no segundo volume apresentamos textos que perturbam as normatividades da cisgeneridade.
O principal objetivo dos dois livros é mostrar que personagens dissidentes de gênero e sexualidade habitam a literatura brasileira há bastante tempo, ainda que muitas vezes estejam narrados exclusivamente a partir da imaginação cisgênera e heterossexual. Outro objetivo dos livros, que trazem quase cem textos literários, nos mais diversos gêneros textuais, é aprofundar a representação literária lgbt+ nos oitocentos, mostrando que Bom-Crioulo (1895), de Adolfo Caminha, não está sozinho.
Os livros trazem, portanto, trechos de textos já clássicos, como, por exemplo, O elixir do pajé (1895), O cortiço (1890), Bom-Crioulo (1895) e O menino do Gouveia (1914), mas também trechos de obras recém-recuperadas como Saturnino, porteiro dos frades bentos (1842), Os serões do convento (1862) e Um homem gasto (1885). Destacamos também textos de autores “canônicos” como Luís Gama, Qorpo Santo, Maria Firmina dos Reis, Machado de Assis, Coelho Neto e João do Rio, além de textos que prometem reescrever a história literária lgbt+, como O sinhazinha (1904), de João Luso e as esquecidas obras de Laura Villares.
Veja um trecho de O Sinhazinha:
“A alcunha é Sinhazinha; o nome ninguém o sabe. Tipo de mulato dengoso, a gingar, a rebolar-se, vestido sempre de claro, uns paletós e umas calças que lhe cingem e lhe desenham as curvas flácidas do corpo; chapelico à cabeça, deixando escapar, retinta e oleosa, a grenha em anéis; gravata invariavelmente vermelha, de lacinho; grandes olhos húmidos; e nem sombra de buço no lábio pálido que se debrua e espalma, se vai sério, e, quando sorri, se alonga em bico, com vaidade e mimo…
Bordeja os largos, para às esquinas, dobrando em arco de flecha o vime da bengala; e tem sempre, parado ou andando, uma ondulação de cinta particular ao seu feitio. Às vezes, a vagabundagem das ruas dá com ele, persegue-o – Ó Sinhazinha! – Sabem não haver perigo algum em o insultar; pobre diabo de maricas, nunca lhe virá o ímpeto de erguer o vime, carregar sobre a malta escarninha, às vergastadas. E o regalo melhor é ouvir-lhe as respostas irritadas, vê-lo afastar-se, numa indignação covarde, latindo injúrias, com lágrimas a cortar-lhe a voz fanhosa de velha requinta. Quanto mais se exaspera, mais se afemina; inflamada pela raiva, a fala torna-se-lhe mais aguda e desafinada; e até na particularidade de abrir todas as vogais, languidamente, e de espreguiçar os ss, como no gozo de uma sibilante carícia, se excede em pitoresco e ridículo.” (Dissidências…, V2, p. 75).
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