O ano era 2006, e aos 12 anos, fui retirada do armário e fizeram um abaixo-assinado para a minha retirada da escola

Das paixões não correspondidas da adolescência, e a confusão da normatividade enfrentadas por uma criança transviada.

O assunto desta semana aventura-se entre lembranças de paixões não correspondidas do tempo de escola, de uma adolescência em corpo de menino incompreendida, e também outras adolescências cis, que não encontraram naquele ambiente educacional, ensinamentos sobre respeito às diferenças, organização social e afetividade, com os outros e consigo.

Talvez, esse texto seja sobre a importância da escola para uma pessoa transviada. Na era da internet, cada vez mais, nos deparamos com assuntos que antes não era comum falar, ou sequer sabíamos da existência. “Responsabilidade afetiva” é um desses assuntos, que não estava no diálogo comum antes, mas são cada vez mais emergentes e necessários (ufa, ainda bem), sobretudo para a população trans, colocada como centro de uma coalizão de violências estruturais que materializam-se em nosso cotidiano.

O assunto desta semana aventura-se entre lembranças de paixões não correspondidas do tempo de escola, de uma adolescência em corpo de menino incompreendida, e também outras adolescências cis, que não encontraram naquele ambiente educacional, ensinamentos sobre respeito às diferenças, organização social e afetividade, com os outros e consigo. Talvez, esse texto seja sobre a importância da escola para uma pessoa transviada. Na era da internet, cada vez mais, nos deparamos com assuntos que antes não era comum falar, ou sequer sabíamos da existência. “Responsabilidade afetiva” é um desses assuntos, que não estava no diálogo comum antes, mas são cada vez mais emergentes e necessários (ufa, ainda bem), sobretudo para a população trans, colocada como centro de uma coalizão de violências estruturais que materializam-se em nosso cotidiano.

O ano era 2006 e naquele momento, aos 12 anos, eu começava o descobrimento da minha sexualidade, inconformidade de corpo e não correspondência aos estereótipos do gênero masculino. Aquele momento, era a primeira vez que eu saía da zona rural de São João do Sabugi, em cima de um pau-de-arara, para estudar na zona urbana, trajeto este que se repetiria até o fim do ensino médio em 2012.

Criada no sítio com o convívio diário de minha mãe, minha tia e minha bisavó, eu não sabia, nem havia sido ensinada à mentir sobre determinados sentimentos, e muito menos como funcionava algumas normatividades corporais, dado o fato que no sítio, não haviam palavras nem rotulações dessas mulheres, em relação à mim. Não que não houvesse violências na zona rural, frente às minhas inconformidades com as masculinidades. Várias outras pessoas violaram-me de diferentes maneiras, em minhas primeiras lembranças, isso vem desde os 5 anos de idade, em uma vila de terras doadas de aproximadamente 35 famílias. Mas o afeto que eu tive da minha mãe, tia e vovó, fez toda a diferença em como eu enxerguei muitos processos da minha vida.

Na nova escola, surgiu minhas primeiras paixões e amizades “viadas”, de crianças que assim como eu, eram olhadas de maneira enviesada pelos adultos. E mesmo que nos primeiros meses de 2006 eu não compreendia aqueles maus olhares, foi com crianças semelhantes a mim, que eu comecei a brincar e fazer amizades. Foi quando surgiram os primeiros boatos entre os meninos da zona urbana, que eu seria “viado”.

Conjuntamente, foi a primeira vez que, convivendo com pessoas que eu não conhecia, tive minha primeira paixão infantil, por um menino. Naquela ocasião, lembro-me perfeitamente, como se fosse hoje: estávamos numa aula de matemática, e toda a turma desconfiava que eu não fosse “homem”, como diziam e, ao meio da aula, quando resolvíamos contas de multiplicação, o menino que eu gostava jogou um papel na minha carteira, perguntando se eu gostaria de “ficar” com ele, com as opções “sim” e “não” para marcar. Sorrindo feliz pela pergunta, eu marquei “sim”.

Como eu nunca fui boa em matemática, fui a última a sair da sala para o recreio, e quando cheguei no pátio já estavam vários meninos rindo e apontando para mim. Em meio às palavras de “mulherzinha” e “bichinha”, meu grande choque, naquele momento, foi compreender que o bilhete deixado na minha carteira, não se tratava de um sentimento de afeto correspondido, mas de uma piada de mau gosto, para rirem pelos dias seguintes. Mesmo sem compreender, eu fui tirada do armário, e humilhada no recreio da escola.

Não tardou o fim do recreio, toda a escola já estava sabendo do ocorrido e olhavam para mim e riam em todos os cantos que eu passava. Assim, envergonhada, sentei sozinha e merendei em uma mesa mais afastada. A diretora, uma das peças centrais dessa história, compreendendo a confusão e o assunto que corria entre os estudantes, ficou de pé próxima ao corredor, observando todas as crianças durante o intervalo, sem dizer nada.

Extremamente envergonhada, voltei para a próxima aula que também era de matemática e a professora ao entrar, foi na minha carteira e disse: “meu filho, essas coisas, a gente não diz na escola não, a gente resolve em casa”. Em seguida, seguiu para a sua mesa enquanto os demais estudantes retornavam à sala de aula.

Seguiram-se as últimas duas aulas, e eu calada. Quando deu 17:30h, com o fim da aula, rumei à praça pública da pequena cidade, onde o carro pau-de-arara esperava os estudantes rurais, para o retorno aos sítios. Naquele mesmo dia, entre 18:20h e 18:40h, horário em que os carros chegavam de volta da escola, eu desci do carro e fui para casa, coloquei minha mochila em cima da cama da minha mãe, e disse a ela que na escola tinha acontecido uma humilhação comigo por ser diferente. Foi então que, sentada comigo na cama, para saber o que havia acontecido eu disse: “mãe eu tô gostando de um menino, na escola, e todo mundo fez pouco de mim por causa disso”.

Naquele momento, minha mãe também arregalou os olhos, com susto, e perguntou: “Você tem certeza disso? É isso que você quer para a sua vida?”, e eu mesmo insegura de responder, depois que vi seu olhar de surpresa, respondi sobre o que eu estava sentido: “É”. Minha mãe se levantou sem dizer nenhuma outra palavra, foi para a cozinha e chorou. Já eu, fiquei sentada na cama e chorei… Estávamos sozinhas em casa (mas não estávamos sozinhas, tínhamos uma à outra, e isso provou-se ao longo do tempo).

Nos dias de aulas que seguiram, tornei a ir à direção da escola, tornei a falar com o menino sobre o porquê da brincadeira de mau gosto, assim em meio a insistência e ao fato de estar buscando uma explicação, fui suspensa da escola por uma semana, levando no bolso um bilhete para minha mãe. Só que quando eu retornei, continuei querendo saber do menino o porquê dele fazer aquilo comigo, foi que ele disse a família dele o que estava acontecendo: “que um viado, na escola, estava pegando no seu pé”.

Aliás, a explicação que uma criança dá à outra, ambas de 12 anos, foi absurda, partindo do olhar de hoje, mas partindo deste mesmo olhar atual, voltando-me à criança que fui, as palavras que foram-me ditas não deixaram de dizer-me o local social que eu estava convidada à ocupação, por toda a minha vida, frente aos homens héteros-cisgêneros. As únicas respostas que o menino deu-me foi: “Vão te colocar na justiça se você não acabar com esse assunto”.

Pela primeira vez na minha vida, também, ameaçaram a acionar o dispositivo da justiça para fazer-me medo. Duas crianças, de idades idênticas, compreendendo como os dispositivos operam, sendo uma “criança viada” e outra não. A diferença é que o menino que me tirou do armário já havia aprendido as coisas e as funções sociais para determinados corpos, que eu ainda não havia aprendido.

O fato de não deixar o assunto quieto, incomodou muito toda a turma que uma semana e meia depois, em uma quarta-feira, logo depois da suspensão, surpreendeu-me com um abaixo-assinado para a minha retirada da turma e possivelmente da escola. Foram mais de 30 assinaturas em uma turma de 36 estudantes. E ali começaram as penalidades normativas mais bruscas e incidentes sobre o meu corpo. O início das muitas possíveis penalidades de uma vida transviada, que não se submete a ser humilhada e ficar calada, ou pior, que insiste em explicações.

A diretora acatou o abaixo-assinado nos meus antigos colegas. Naquele ano, minha mãe foi acionada na escola em dois momentos, em duas suspensões: a primeira depois do abaixo-assinado, o qual disse que não me retiraria da escola; e algumas semanas depois, em uma segunda suspensão de mais uma semana quando um amigo disse que gostaria de experimentar uma maquiagem em mim, eu concordei e coloquei sombra nos olhos.

A segunda suspensão, por causa da maquiagem, a diretora em tom agressivo de advertência disse-me que a escola “não era lugar para aquelas coisas” e que eu deveria me “ajeitar”, ou seria expulsa da escola e minha mãe novamente seria acionada. Em outras palavras, se eu continuasse transviadando, sofreria cada vez mais outras penalidades. A escola não era espaço para “aquelas coisas” e eu deveria me “ajeitar”? “Aquelas coisas” não dizia respeito à maquiagem e nem a confusão do bilhete, mas dizia respeito a pessoas como eu.

No ano seguinte, em 2007, colocaram-me no 7º ano “D”, em uma sala de aula minúscula que aparentava ter aproximadamente 3m², esquecida e longe do bloco de salas, próximo à biblioteca, aos fundos da escola, colada entre a cantina e a sala dos professores, com jovens bem mais velhos e com problemas de várias repetências da mesma série. Aos 12 anos, relegaram-me à margem, como os demais colegas daquela nova sala e acabaram todos os contatos que eu tinha com a minha primeira turma da zona urbana, que em contraponto, encontrava-se no mesmo local do ano que havia passado, no bloco de salas, na entrada principal da escola. Ao centro.

Em 2007, quase 1 ano depois do abaixo-assinado acatado pela direção da escola e da suspensão por maquiagem (além de várias outras reclamações que a diretora fez à minha mãe ao longo dos 4 anos finais do ensino fundamental), eu me sentia extremamente indesejada pelos profissionais da escola e pelos estudantes da mesma faixa etária que eu, me sentia impedida de fazer amizades e parecia estar sendo constantemente vigiada. E esse sentimento de não poder conversar, de vigia e de sempre estar fazendo algo errado, era horrível.

A diferença orgânica da minha marginalização educacional para a dos meus novos colegas entre 16 e 17 anos, foi que com 12 anos de idade, foi me dito exatamente o porquê de estar sendo compulsoriamente excluída da sociabilidade escolar e do convívio com uma parte dos meus antigos colegas. Parece absurdo na cabeça de muita gente que o simples respirar, estar viva e o fato de existir pessoas como eu, não é um problema. Naquele momento, a escola não compreendeu isso, e ninguém sabia responder ou interceder por uma criança transviada.

Mesmo com tudo isso, a escola, a diretora de outrora e os meus antigos colegas, sequer poderiam imaginar que muito antes da minha retirada do armário e culpabilização social de um corpo LGBT, antes mesmo dos 12 anos de idade, entre 5 e 6 anos que foi quando começaram os primeiros problemas ainda na zona rural, minha mãe frente àquelas aproximadamente 30 famílias de zona rural, insistia veementemente em dar-me conselhos. Dizia-me quase todos os dias que acontecia algo e eu chegava chorando em casa que eu precisava estudar para fazer mais por mim mesma, já que ela, ali onde morávamos, não podia fazer muito por mim.

Quebraram-se muitas coisas e tantos outros dispositivos foram acionados e estão implícitos aqui, para não ficar demasiadamente grande o texto. Relendo atentamente, é possível perceber alguns outros gatilhos, mas enquanto adulto, eu preciso dar palavras àquela criança injustiçada.

Hoje, eu compreendo que o choro da minha mãe, no dia da minha retirada do armário, foi um choro de quebra de expectativa que eu não fosse LGBT, algo que foi dito a ela de maneira ruim. Talvez, tendo sido um choro calado na cozinha e não um choro de desgosto por não ter um filho hétero, mas um choro de preocupação com o que poderia acontecer-me, a partir daquele momento que eu confirmei a ela que eu gostava de um menino. Mesmo não tendo a compreensão da complexidade que torna isso ruim em nossa sociedade LGBTfóbica.

Depois de muito tempo, já na Universidade, a questão educacional tornou-se uma grande questão na minha vida, e não é para menos. A escola é um ambiente traumatizante para um corpo transviado, e quando se chega na Universidade se ressignifica isso, com outras corpas transviadas, a educação torna-se transformadora. A gente começa a perceber o quão é urgente interceder com crianças transviadas.

Às vezes, encontro ao acaso na rua as pessoas de outrora, de quando tudo isso aconteceu, e elas me olham com olhos de assombro. Na cidade pequena, todos sabem que eu peguei tudo o que já aconteceu-me tão cedo, e tornei-me a monstra que disseram-me ser. Só que, monstra adulta, transviada e graças ao suporte afetivo da minha mãe, também tornei-me “armada até os dentes” de conhecimentos contra a guerra supostamente implícita da normatividade.

Apesar de tudo, não digo nada disso com tristeza. Não recordo em ataque ou mágoa, mas rememoro como quem dá motivos para lutar conjuntamente, contra os sistemas de opressão e violência de gênero e sexualidade. Até mesmo daquela primeira paixão que acabou tirando-me do armário, rememoro com carinho. Por mais que aquela confusão tenha tido dispositivos que atingiram-me de várias maneiras naquele momento, enquanto humana, poder existir com um sentimento de bem querer ao outro, sempre será algo nobre.

Ao longo do início da minha vida fora do armário e com algumas vulnerabilidades afetivas no início da exposição normativa, tive três paixões, em diferentes momentos: aos 12, aos 14 e aos 15 anos de idade. Todas não correspondidas e frustradas, esbarradas na incompreensão de gênero e sexualidade em uma pequena cidade conservadora. Logo, rememorar com carinho esses velhos sentimentos de paixão, jamais será pelas situações de outrora, pois tanto eu, como os meninos que gostei, éramos todos muito jovens. Relembro com carinho os sentimentos bons que existiram em mim. No fim, são os sentimentos bons que valem puramente nossas recordações da intensa juventude.

Aqui não cabe tristeza porque, triste mesmo, é quem não sabe lidar com o amor, e violentamente, tenta matá-lo. Depois de adulta, acredito que é um dever meu, olhar com delicadeza para o meu passado, para poder dizer: “Apesar de tudo, eu estou bem. Mas não quero que se repita, nem comigo, nem com ninguém!”. Meu texto está aqui para o público pelo fato de ficar preocupada. Buscando esclarecer e não deixar que aconteça com outras pessoas, coisas parecidas com o ocorrido comigo por falta de informação. Aqui, é uma forma de interceder por outras crianças “viadas” que passam opressões. Quero mesmo, que quem esteja lendo, lute comigo.

O que não valeu, o que se desencadeou a partir da repressão dos bons sentimentos e transviadagens, a gente torna material de análise, para perceber como essas forças de injustiça operam. Fiquemos atentas!

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Florence Belladonna Travesti

Travesti do mato, andarilha por sítios e criada por mulheres bisavó, mãe, tia e madrinha em São João do Sabugi - RN. Gosta do vento, de banho de chuva e rio. Ama doce de leite, provar sorvetes e bolos. Aventura-se por palavras lidas e escritas como quem beija o infinito, a própria liberdade.

2 thoughts on “O ano era 2006, e aos 12 anos, fui retirada do armário e fizeram um abaixo-assinado para a minha retirada da escola

  • 5 de dezembro de 2020 em 10:57
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    Ótimo texto e incríveis reflexões sobre a vida, os sentimentos e afetos. Fico feliz que você recorde disso tudo com a cabeça erguida e firme, diante das dificuldades de nós crianças LGBTQ + nesses espaçados que finda não acolhendo a todas/es/os.
    Força para seguir (sempre).

    Resposta
  • 5 de dezembro de 2020 em 16:36
    Permalink

    Seu texto é soberbo. E necessário.
    O acolhimento e respeito às crianças LGBTQIA+ é urgente!

    Resposta

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