Como eleições conservadoras recaem sobre uma travesti, e a política ativista enquanto uma estética da existência diária: o insuportável exercício da transfobia estrutural em cidades pequenas.
Enquanto pessoa trans, em um contexto social brasileiro complexo e perturbador para esse grupo social, a organização política municipal faz com que possamos compreender como as instituições políticas operam nacionalmente, sobretudo levando em consideração a argumentação de Grada Kilomba, ao dizer que “o Brasil é uma história de sucesso colonial”. Infelizmente, não obstante, enquanto sociedade civil, também há uma parcela de LGBTs que apoiam políticos conservadores, e estes políticos usam de algumas artimanhas estruturais e vulnerabilidades sociais, para conquistar LGBTs fragilizados intelectualmente. Nesta semana, é desta tonalidade de cinza, que eu gostaria de falar.
O machismo, misoginia e falocentrismo, são palavras-chave que operam dentro de uma parcela LGBT, e é preciso reafirmar: uma parcela dissidente, dentro da própria dissidência LGBT, que se comporta de maneira conservadora, serve aos fascismos de maneira dinâmica e veemente na propagação do fascismo, enquanto por outro lado temos um polvo de tentáculos longos e ramificados, atingindo direto e indiretamente vidas travestis e demais mulheridades e transgeneridades ativistas que lutam pelo fim das opressões. É neste último ponto que eu estou implicada, enquanto uma pessoa trans que não compactua com qualquer forma de opressão, mas que é atingida diretamente pela LGBTfobia estrutural reafirmada por uma parte LGBT minoritária, que reafirma os estereótipos de gênero e sexualidade hegemônicas. E é por isso mesmo, que não apresentam ameaça aos fascismos, e são frequentemente chamados enquanto “representantes” de segmento, para políticos oportunistas.
A cisgeneridade e a heterossexualidade compulsória toma para si, muitas formas de deslegitimar uma pessoa trans ativista comprometida com verdades históricas, e uma delas, é a famosa prática do levar “todas” por “um”. Ou seja, tomar enquanto referência algo negativo que uma pessoa LGBT possa ter feito e dizer que todos os LGBTs têm aquela característica ou prática negativa, demonstrando ainda uma grande confusão nas distinções do que é sexualidade e gênero. Pessoas LGBTs conservadoras que apoiam políticos conservadores, votam pelo seu próprio adoecimento. E pior ainda, atingem e agridem de maneira estrutural seus pares, dentre os quais, aqueles que lutam socialmente por melhorias para nosso grupo, historicamente menosprezado.
Enquanto alguém que fala de uma cidade de interior do Rio Grande do Norte, com pouco mais de 6 mil habitantes, algumas atitudes políticas aqui no município onde moro deixaram-me bem claro como os sistemas de pensamento operam frente às realidades sociais fragilizadas, de pessoas gays e lésbicas e bissexuais, aqui do município. São apoiantes e servidoras de uma construção política para homens conservadores, não condizente com o local social que nós ocupamos dentro do Brasil e deste município, sem nenhuma distinção de outros territórios nacionais. Neste país, de maneira política, é possível afirmar sem nenhum medo de erro desta generalização, que LGBTs nunca foram bem vindos. Então, qual a lógica de votar em quem conosco, nada quer?
De maneira alarmante, o período de eleições presidenciais e municipais evidenciam em suas respectivas esferas o local distópico que é o Brasil. “Desubicado”, que se fosse pensado até mesmo pela ficção, não seria tão triste quanto a realidade sisuda das opressões que variam de físicas, discursivas e psicológicas. E o que mais me preocupa: a manutenção de representações masculinas hegemônicas que sabemos de onde vêm, mas não sabemos para onde é que vai senão ao fascismo estrutural. Para aqueles que fazem usos estratégicos de alguns silêncios, perdurando e renovando-se a cada 4 anos em âmbitos municipais, estaduais e federais. Há muitas maneiras de ser homem branco-cis-hétero que goza com violências simbólicas, e isso precisa ter fim, precisa ter reparação histórica.
Em uma organização política de disputa de poderes em que determinados homens veem a política institucional um show de vale-tudo. As organizações de disputa para o exercício de poder tomam características sutis e eficazes: é quando políticos de direita, centro-direita e conservadores tentam contatos com LGBTs. Na eleição municipal busca-se conquistar e fazer alianças com pessoas vistas como inúteis à cis-hétero-normatividade durante toda a vida, mas que de 4 em 4 anos vale 1 voto. E de voto em voto, o estado tradicionalmente opressor, mantêm-se.
No Brasil, o analfabetismo político é um projeto, assim como todos os outros projetos de desmonte, como o enfraquecimento progressivo e eficaz do SUS e da Educação. Muitos políticos aproveitam-se do fato que muitos LGBTs não sabem o quão valioso é um voto e arquitetam conquistar uma parte destas pessoas que, em uma sociedade LGBTfóbica desejam ardentemente serem “inseridas” sociamente, com uma confusão entre inclusão e normatização. Ser normatizada não é ser incluída. É preciso prestar atenção em três palavras: inclusão, normatização e normalização. O desejo de normatização, advindo de um desejo do que seria inclusão, pouco compreendida, é diferente de desejar ter seu corpo normalizado em diferentes ambientes. A inclusão do corpo LGBT precisa muito mais do que uma estandardização. É a partir dessa confusão sentimental, conceitual e psicológica que políticos conservadores operam e conseguem votos de pessoas LGBTs.
Enquanto única pessoa trans de uma cidade do interior, minha preocupação torna-se ainda mais autêntica, dado o fato que já ouvi de outras pessoas gays, lésbicas e bissexuais, inúmeras vezes em diferentes conversas, que eu era “louca”, “Alice”, ou que “esperava o príncipe encantado”, no sentido de que, tudo o que eu poderia argumentar seria uma idealização fantasiosa. O incômodo, mesmo desacreditada por uma parte dos LGBTs locais, que desdenham do que eu possa argumentar, é que ao fundo tem minha identidade local, rural, que adoraria ser fortalecida com um ambiente de respeito e oportunização de vida com as diferenças. Eu também compreendo isso.
O sistema de conservadorismo fascista aproveita-se das brechas e carências LGBTs, para prometer-lhes integração social em troca de seus votos. E isso é perigoso, porque resvala sobre outros que não compactuam com o conservadorismo. Enquanto projeto hierárquico, capitais e interiores do Brasil desejam impossibilitar a liberdade de pensamento e expressão de gênero e sexualidade envolvendo-se com uma estrutura política sutilmente organizada, que visa o benefício próprio do pacto biológico branco, cisgênero e heterossexual.
Nestas eleições municipais, ouvi de pessoas conservadoras que elas até gostavam de mim, mas que eu não precisava ser violenta com quem não concorda comigo politicamente. Que isso me afastava das pessoas, se meu intuito fosse conquistá-las.
Ora, parece-me engraçado. Ter crenças radicalmente antiviolências assusta as pessoas. Quer dizer que, se eu tivesse ao menos uma identidade em comum com as pessoas que eu assusto, eu poderia ser ouvida? “Ao menos uma identidade em comum” pode significar que eu poderia ter uma causa LGBT, mas que ao menos fosse racista, ou misógina, ou classista, ou capacitista? Então não, muito obrigada. Prefiro não ter identidades em comum com pessoas conservadoras e ser taxada de violenta. Talvez, inclusive, eu esteja pensando muito sofisticadamente. Talvez as pessoas conservadoras nem pensem assim e queiram demandar de mim, apenas a submissão. É exatamente isso, não ser submissa a organização necropolítica ao meu redor é ser violenta. E esse argumento coloca meu corpo, também na lista da limpeza. Percebe como a estrutura LGBTfóbica articula-se?
Esse jogo de morde e assopra, nas eleições municipais, lança-nos olhos para compreender como o Brasil chegou no seu mais vergonhoso apêndice da história contemporânea, Jair Bolsonaro. O fascismo se prolifera por via daqueles que votaram diretamente em Bolsonaro, assim como, daqueles que votaram em políticos municipais e partidos que apoiaram Bolsonaro. Nessa equação delicada, quem ainda não sujou as mãos de sangue? Conta-se nos dedos de uma mão, os partidos políticos realmente antifascistas e, infelizmente, não chegam nem ao número de 5.
Partidos antifascistas, dispersos e isolados, quase somem. Não chegam às câmaras nem às prefeituras ou sequer, muitas vezes, chegam a alguns municípios interioranos, onde a disputa é de conservadores entre eles. Miseravelmente, o Brasil tornou-se um furacão de destruição pensada culturalmente, pela população civil, abandonada e assustadoramente, orientada e conservadora. Por quanto tempo mais, haverá esperança neste futuro que nunca chega, nunca é visto, e sempre tachado de violento e negativamente de “comunista”?
Aqui em São João do Sabugi quando, em algum momento, tentei argumentar sobre política institucional no âmbito municipal, neste ano de 2020, muitas pessoas levaram minha argumentação para um viés de politicagem, defendendo partido A, diferente de B, distintos por bandeiras verdes ou vermelhas. Ouvi e vi, também, sobre publicações minhas feitas no Facebook, que correu em grupos de WhatsApp e até surgiu um vídeo-resposta que um candidato à vereança fez para mim. Vídeo-resposta este, que eu fiquei sabendo 3 dias depois de feito, por um acaso, conversando com um primo que mora no Pará que me perguntou o que eu tinha achado do vídeo.
“Como assim, que vídeo?”. Às vezes, recaio sobre a inocência de acreditar mesmo que alguém que lê o que eu critico de maneira institucional, compreende o que eu quero dizer. Ledo engano. Os sistemas de pensamento lançados sobre uma travesti historiadora que estuda discursos e maneiras de pensar é tão revelador quanto produtivo. Sanando a minha inocência de outrora, boquiaberta, descobri que a cidade que não mantém diálogo comigo não só não me compreendiam, como eu também à incomodava muito, por ela não ter conseguido ao longo tempo me invisibilizar.
Toda travesti sabe que uma parte da sociedade civil não a quer por perto, sobretudo em cidades pequenas, mas é preciso compreender como os sistemas de pensamento mais sutis se articulam e isso nos vale muitíssimo, sempre é revelador. Já que, mesmo que minha relação com São João do Sabugi seja enquanto uma estrangeira de dentro, onde sociedade civil e jurídica não dialoga comigo, E eu não mantenho uma ligação com políticos e partidos, o incômodo que causei foi ao dizer que a política instituição está enfraquecida por todos os lados, em todos os partidos que disputam poder na pequena cidade, partindo de um adjetivo dito em palanque, de “grandes estadistas” à Otto von Bismarck e Winston Churchill, fez com que eu percebesse o quanto essa sociedade interiorana está à espreita de tudo que eu faço ou digo, mesmo que tentem, ao máximo, fingir que eu não existo.
Mesmo que finjam que nós não existimos e que tentem nos penalizar, não obstante disso, travestis incomodam sociedades que não conseguiram fazer com que ela suma na multidão normativa. E pelo contrário, toda travesti torna-se um incômodo extremo ao se destacar em meio à multidão que não a quer. É assim que, por viés da politicagem lançada à uma travesti que pensa politicamente, algo se torna revelador de como ela pode subverter uma cidade inteira.
Que continuemos subvertendo, que continuemos incomodando.
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