“Não sou da teoria, sou da prática!”

Este texto traz alguns aspectos acerca de discursos e processos coloniais no modo de pensar algumas vezes. Ele é escrito para pensar.

O que está acontecendo no Big Brother Brasil em 2021, em relação a participante Lumena, considero em algumas nuances uma representação que é fruto de um problema prorrogado dentro da academia brasileira, de academicismo insensível e desumano, com firulas conceituais que sempre culminam na desconfiança dos nossos iguais, no caso da academia são todos os estudantes com diferentes histórias e momentos de vida. No caso do reality show, o apontamento e desconfiança entre lésbica e bissexual, frente a bissexualidade de um homem preto retinto. O que essas duas situações têm em comum?

No labor acadêmico, muitas vezes, não é estranho o exercício da pesquisa tornar-se uma disputa de qualidades, notas e importâncias, a hierarquização de quem é bom ou não em determinado laboratório, de quem representa algo mais importante em determinado ambiente, de quem pode ter mais visibilidade por estar associado a imagem deste ou daquele professor orientador, além dos abusos psicológicos constantes exigindo o produtivismo. A participante Lumena exemplifica essas atitudes, não incomuns ao meio acadêmico, muito bem qualificada, mas competitiva, rude e desumana.

O recado das massas é um alerta, a rudeza e a desumanidade que causa apatia precedente a qualquer excelente qualificação que uma mulher preta lésbica possa ter. Turvando a importância do que ela poderia representar neste momento, nacionalmente, e no caso específico do programa de TV que chega nos recôncavos mais distantes, a má representação torna-se imagem estática na cabeça das pessoas. Em um país extremamente desigual, em que a grande maioria das pessoas não sabem para que serve ao certo, ou como funciona a Universidade, haja em vista a eleição bem-sucedida de um presidente que teve amplo acatamento nos argumentos de campanha, afirmando que as universidades públicas eram sinônimo de plantações de maconha e grandes orgias públicas.

Lumena é uma mulher preta, lésbica, acadêmica e militante. Mas, extremamente rude e desumana, ao que deixou transparecer em rede de televisão nacional. Ela não perdeu seu valor de representação de mulher preta, lésbica, acadêmica e militante, mas sua desumanidade, neste momento de sua vida, recaiu como uma bomba sobre todos os militantes e ativistas do Brasil, o que não significa que ela não possa mudar, quando estiver fora do programa.

Na megalomaníaca estrutura de comunicação país afora, à qual estamos vendo de mãos atadas, a reafirmação daquilo já pré-conceituado, figura a ideia do que é um pessoas “lacradora” enquanto militante, ou militante enquanto “lacradora”. E isso destrói todos os esforços que militantes e ativistas constroem com muito cuidado, onde, em um país racista, LGBTfóbico e misógino, qualquer passo em falso é usado para justificar as opressões, deslegitimando a importância das lutas identitárias e dando vazão às opressões.

A espetacularização e a danosidade irreversível do que estamos vendo, acredito eu, também é aquilo que, por vezes, apenas nos afastamos. Quantas pessoas que estudam gênero, sexualidade e raça, numa perspectiva estritamente preocupada com um mundo mais equitativo e ético, já não se encontraram com pessoas que dizem ter os mesmos interesses, mas conspiram com ideias imersas dentro de equívocos que reafirmam as desigualdades e explorações? Isso não é incomum, partindo de pessoas muito específicas que dizem compartilhar dos mesmos interesses nas pautas identitárias, e é preciso ficar atentas.

Certa vez, convidada para um evento acadêmico, onde todas as pessoas convidadas para falar tinham alguma titulação universitária, perguntei a uma das líderes reconhecida localmente: “Qual a linha dos estudos de gênero que você tem mais afinidade?”, e para minha surpresa, ouvi a resposta: “Não sou da teoria, sou da prática”. Essa frase caiu quase jocosa aos meus ouvidos, partindo de uma pessoa que, para alguns ouvidos mais sensíveis, deixa transparecer alguns equívocos graves. Prática dissidente também, porém não estranha na academia, de algumas pessoas falando sem embasamento teórico e estudos profundos, sobre coisas que não conhecem muito bem, mas que acham interessante e colocam algumas palavras, muitas vezes finalizando falas com a reafirmação de preconceitos.

Raras, porém desconfortáveis vezes, presenciei pessoas convidadas para palestras em eventos, sem ter uma mínima noção da importância da proposição de debate. Raras, porém desconfortáveis às vezes. É nesse sentido que ainda somos deslegitimadas. Incontáveis vezes cheguei em lugares onde me propus tecer comentários sobre teoria de gênero, de maneira muito cuidadosa, enquanto pessoas acreditavam que eu estava falando do que eu vivia muito particularmente, enquanto travesti. Nesses ambientes, eu também pude observar que algumas pessoas só passavam a acreditar em mim enquanto boa estudante, depois que eu cambiava sutilmente a discussão de gênero queer e pós-estrutural simplificada, de boa compreensão geral, para voltas discursivas conceituais, citando vários autores ao mesmo tempo, culminando na não compreensão da muita gente, sobre o que eu estava falando, mas também resultando numa espetacularização da travesti que “sabe o que está falando”. Quando o ambiente era árido e eu precisava mostrar que dominava uma discussão conceitual, eu sempre terminava triste e sentindo-me esvaziada. Eu passava alguns dias para recuperar-me de tal preocupação e tristeza em saber que não fui compreendida, mas servi à espetacularização esperada da travesti que “sabe”.

É preciso salientar, para que não haja uma má compreensão: a academia é transfóbica, e é uma necessidade urgente de travestis estarem em locais acadêmicos, debatendo saberes científicos. Quando falo “espetacularização da travesti que sabe”, refiro-me ao fato de que, dentro da academia, a maioria das pessoas nunca espera que saibamos de nada e precisar provar a todo momento que também compreendemos eximiamente o campo científico, cansa, dado o fato que quem “precisa provar”, fica subordinado há quem vai “acreditar ou não”. E ciência não é “acreditar ou não”, quando uma travesti pesquisadora fala de gênero, ela precisa ser respeitada na identidade docente dela. Qualquer coisa menos que isso, é transfobia.

Com o passar do tempo, sentindo-me esvaziada e não ouvida, acabei dando um apelido engraçado, senão trágico de “a morte do cisne negro”, onde quanto mais a travesti se debatia, mais as pessoas aplaudiam sua queda e não se importavam com nada além do espetáculo. Eu percebia claramente os olhos do respeito estalarem sobre mim só quando eu citava autores e mais autores, conceitos e mais conceitos, sempre sem fim, e sem entendimento pela maioria dos públicos. Antes disso, eu sempre era uma estranha vista com curiosidade, convidada por educação, e pronta para sumir e não ser mais vista em vários ambientes.

Minha experiência íntima também repete-se com outras travestis. Isso me leva a crer em outro aspecto, dentro de um campo rude da cultura acadêmica: mesmo que eu esteja deleitada em teoria, a minha experiência íntima de gênero, enquanto travesti, não vale? Toda travesti passa por situações semelhantes.

Voltando-se às ações da Lumena, no reality show em tv neste momento, quando soube da bissexualidade de um homem preto retinto dentro do programa, ela apontou o dedo e disse: “Você está agenciando uma pauta coletiva para o ‘B.O.’ que é seu! Você não é especial!”.

A palavra “agenciamento”, dentro dos estudos de gênero e sexualidade, geralmente, aparece em encruzilhadas a partir de estudos das relações rizomáticas de Gilles Deleuze e Félix Guattari, quando, a partir da psicanálise, demonstra-nos como as relações humanas podem se organizar pelos processos de afeiçoamento, bons, ruins, indiferentes, por exemplo, de uma pessoa pela outra. É exatamente essa, uma das conversas que os estudantes de gênero têm com qualquer pessoa que fala “agenciamento” sem precisar citar o nome de autor nenhum. O que nós estamos vendo, e o que, particularmente, incomoda-me bastante, é que levando-se em consideração a fragilidade socioeducacional do Brasil, quem compreende o que é um dedo apontado e o grito ríspido de acusamento de agenciamento? A grande maioria das pessoas compreendem somente o grito ríspido e o dedo apontado.

É esse cuidado que precisamos tomar para não ser estereotipadas como violentas, tal qual aqueles que nos violentam.

A “morte do cisne negro” à qual refiro-me, é que não devemos esquecer que a academia tem hegemonicamente a cisgeneridade e o academicismo que, muitas vezes, corrobora para a construção de universidades impopulares, e nós, as raras travestis que compartilham desse ambiente, tem que estar mais atenta ao fato de não deixar-nos espetacularizar. A academia cisgênera, branca, hétera e de classe média, nos últimos anos está com quadros de mudança, graças aos sistemas de cotas para pessoas pobres e escola pública, pessoas com deficiência, pessoas pretas e indígenas, mas para pessoas trans e travestis, ainda não tem quase.

Conversando com algumas colegas de academia, não é incomum ouvir que muita gente nos acusa de violentas, quando falamos, mas é preciso ficar espertas para não sermos espetacularizadas e não compreendidas por causa disso. Por isso, mesmo aprendi que o discurso precisa estar simples em público e denso no papel, nos “quadros de guerra” que nos encontramos, ainda é preciso fazer esse exercício, haja vista a escassez de pessoas trans nas graduações, sem cotas, e do não convívio geral da sociedade conosco, em locais institucionais.  A ignorância de parte esmagadora da cisgeneridade com aquelas que eles não querem conhecer é quase gigante, e nós, as travestis que em diferentes vias, estão na academia, estamos em campos de guerras quase invisíveis, ou percebido, quase somente por nós mesmas e alguns poucas pessoas verdadeiramente cisgêneras aliadas à anti-transfobia.

Mas afinal, o que eu estou costurando aqui? O exemplo dado acima, veio-me à mente como maneira de ilustrar algo mister, que o atual assunto nacional despertou lembranças em mim: no Brasil, os ativistas encontram-se em péssimos lençóis políticos.

Estão, então, três processos que nós precisamos ficar atentas: é possível percebermos uma distinção clara nos danos causados pelo (1) distanciamento entre teoria e prática, junto ao processo de (2) estereotipação dos grupos militantes enquanto violentos e grosseiros, e o (3) academicismo desumano e rude, que operam cada vez mais para o distanciamento íngreme entre universidade, ativismo e povo, para um mundo melhor, colocando abaixo o trabalho de muita gente que, delicadamente, constrói relações políticas humanas acolhedoras.

O ativismo na qual eu me refiro aqui, ou pelo menos a leitura que eu faço, vai de encontro com os estudos de Michel Foucault, enquanto uma estética da existência, uma maneira ética de viver em sociedade, da maneira menos danosa possível, levando-se em consideração toda a nossa história da formação social, onde busca-se compreender e ouvir as verdades alheias sem feri-las, não apontar o dedo, não fingir que sabe, não fingir ser melhor que outros, nem muito menos ser violenta com as palavras. Ao contrário, o ativismo ao qual refiro-me pensa com muito cuidado, ouve com mais cuidado ainda, e só então ousa arriscar dizer algumas palavras.

Há quem use pomposas palavras para distorcer causas e efeitos da vida social própria ou de outras pessoas que acabam pagando a conta. Mas é preciso salientar que há um grupo de estudantes/militantes/ativistas em um local muito distinto das práticas equivocadas, que encontram-se também nos costumes acadêmicos não abordados até agora: o compartilhamento delicado, generoso e bondoso de saberes para a vida. E isso me revigora.

Neste momento, eu sinto intimamente, que é importante dizer tudo isso, ou pelo menos tentar perceber coisas que, talvez, estejam muito claras para alguns grupos de pessoas dentro da academia que envolveram-se com ativismos a partir de um amor auto-trans-formador, o prazer de contribuir para uma cultura genuinamente generosa na construção de um mundo melhor.

Por toda a destruição das estruturas tão frágeis do ativismo, neste momento em que os ruins estereótipos chegam aos locais mais distantes, é que eu sinto a necessidade de resistir esperançadamente ao escrever isso, mesmo que eu jamais chegue nos mesmos locais que a rede de televisão mais assistida do Brasil alcança. A participante Lumena, enquanto mulher preta, lésbica, acadêmica, militante pelas questões de gênero, classe e raça, tem um valor ímpar, mas neste momento, causa-me preocupação, e uma ponta de tristeza, pela eminente desconsciência da sua autorrepresentação dentro do reality show. E da destruição de estruturas frágeis no Brasil afora, país onde prolifera-se o ódio às diferenças, e que aproveita-se de ações equivocadas de uma pessoa potencialmente representativa de grupos historicamente oprimidos, e generaliza enquanto uma característica de todas as pessoas com os mesmos interesses de repação, para dar um significado negativo as práticas desejantes de equidade social.

Resisto. Resistamos!

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Florence Belladonna Travesti

Travesti do mato, andarilha por sítios e criada por mulheres bisavó, mãe, tia e madrinha em São João do Sabugi - RN. Gosta do vento, de banho de chuva e rio. Ama doce de leite, provar sorvetes e bolos. Aventura-se por palavras lidas e escritas como quem beija o infinito, a própria liberdade.

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