Entre a tradição e a alegria arruaceira: então, é Natal!
Para muitos, o Natal representa um misto complexo de sentimentos, que variam entre esperança, alegria, amor e tristeza, sentimentos separados ou juntos demonstra-nos o quão esta época traz à tona, coisas que significam e ressignificam nosso ano inteiro. A última semana do ano, certamente é de reflexão, e mesmo assim, não costumamos parar para escrever sobre este dia, neste dia. Uma parte do povo, aproveita para vivê-lo, o que é bom. Mas, para muita gente o natal também não é uma referência de extasiante alegria. Hoje, eu escrevo para este dia, para que ele seja um bom dia, e para dizer aos amigos e conhecidos que, de algum modo, eu passei meu dia de natal com eles.
Que o ano de 2020 foi difícil, não há dúvidas, pelo menos para uma parte da sociedade que, ao menos, compreendeu de algum modo que pandemias são momentos históricos complexos e marcadores, que envolve pontos diversos, tanto nas gerações humanas que a vivenciaram, quanto na própria história da humanidade. Por isso mesmo, é que uma pandemia se torna histórica porque perpassa a história de cada humano de modo marcante. Mas, nos escritos da história do Brasil optou-se mais uma vez pela desvalia do povo.
Este Natal vivenciado em meio a uma pandemia que começou solitária, compulsória, ansiosa, preocupada e triste, há 10 meses atrás, hoje se encontra com tantas mortes, que se desenvolveu um sentimento de falta de esperanças, mais pobre e angustiado com o futuro que não sabemos o que nos espera. Mesmo assim, é preciso dar outros significados para 2020, para além do triste número de pessoas que pereceram diante da COVID-19 e do desgoverno brasileiro. É preciso dizer àqueles que estão sobrevivendo, de maneira complexa, numa quarentena sem previsão de fim, que é preciso ver algumas belezas do dia-a-dia para que não adoeçamos.
Mesmo assim, gostaria também de chamar atenção para uma outra perspectiva, que me marca todos os anos, ao passar o natal sozinha. O Natal é época de (re)nascimento, o nascimento do menino Jesus na tradição cristã, mas e quando o desejado nascimento de um menino-profeta, na visão de uma religião quase hegemônico ao mundo ocidental, lembra-nos a reafirmação de que uma parte da nossa sociedade que, desvalida, sequer não têm o direito, nem a pretensão, de ter família? Porque não se pode decidir renascer travesti ou homem, no caso dos homens trans?
Falo de um local de existência travesti, que desde suas existências antepassadas, estão perpassadas por um problema de ontogênese, nascimento e desenvolvimento do ser. E aqui não de maneira biológica, mas filosófica e humana, havendo uma cosmovisão social deturpada entre religião, biologia, mulheridades e masculinidades trans, complexas, e majoritariamente preconceituosas, que nos retiram de ambientes sociais familiares, e muito mais ainda, de festividades que celebram isso. Aliás, de maneira triste, pergunto-me retoricamente, todos os anos, onde estão as travestis e os homens trans no Natal?
O Natal torna-se uma época triste para muitas pessoas trans e LGBT+ porque lembra-nos que a celebração do nascimento de um menino que promete prosperidade familiar, não nos inclui. O Natal lembra-nos que a nós, pessoas trans, em grande maioria foi-nos negadas famílias exatamente por não se desenvolver com o tipo de costumes que nossas famílias desejam e projetam sobre nós, com o que nos foi definido ao nascimento, e por isso mesmo, somos retiradas do ambiente familiar, enquanto animalescamente desconhecidas por aqueles que nos pariram. No caso das travestis, nossas famílias realmente esperam que sejamos grandes homens, em manutenções normativas, e quando nós dizemos que temos uma identidade feminina, quebra com essa tradição e a sustentação de um modelo de família hegemônico, por isso mesmo, é que há um choque.
No caso específico das travestis, ao menos desde o século XII (12), uma das figuras do Diabo, na mitologia católica, era de um ser híbrido entre homem e mulher, de seios e pênis, visão reafirmada e desenrolada em como a sociedade nos vê. Ao mesmo tempo em que a instituição “família”, em modelo específico, ainda hoje é considerada sagrada, como diabas formadas nove séculos passados poderiam habitar este seio?
Mas, a maioria de nós já sabe disso, esses sistemas de encadeamento são retomados várias vezes por nós, durante o ano, ao falar sobre transfobia, sendo importante compreender como isso se dá. A transfobia é uma árvore, como um pinheiro de raízes profundas, tronco grosso, de copa em formato de cone, com folhas visíveis que não somos nós, pessoas trans. É essa sociedade em formato de árvore que nos mata da raiz ao tronco, nunca passamos da metade deste e nem sequer chegamos às folhas, flores e tampouco aos frutos. Ainda demorará algumas gerações até que possamos chegar nos frutos.
Mas nem tudo, no Natal, está entre a tradição da festa que, simbolicamente, não nos deixa entrar, nem nas tristezas que este “não entrar” relembra-nos. Se estamos na rua, façamos festas arruaceiras, até o ponto que eles sintam inveja na nossa festa. Aqui está a alegria arruaceira: fazer nossas festas com referências nossas, com nossos convidados. Quem tem a rua, também é guardiã de tudo o que lá está, o mundo sem fronteiras. Quem não poderia desejar isso, a liberdade de ser si mesmo infinitamente, sem fronteiras?
Mesmo que minha família nunca tenha tido o costume de reunir-se no Natal, e isso tenha acontecido raras vezes nos últimos anos, eu sempre fico sozinha em casa inventando uma coisa ou outra para fazer, antes de ir dormir. Nunca vejo muitos motivos para celebrar nada, nesta data, nem tão merecedora ou corajosa de tocar em territórios familiares delicados, numa noite de Natal, com o desconforto gerado ao não poder chegar bonita como eu gostaria, feminina. Sei que é assim, também, para tantas outras pessoas trans.
Ao contrário, fico ouvindo alguma música ou lendo algum texto… compreendo que tenha muita gente que gosta de mim. Dos amores, tem gente ainda apegada ao menino que nasci, e eu respeito isso, mas o amor que me revitaliza é aquele sobre a mulher que me tornei.
Mesmo preferindo ficar sozinha, nas noites de natal, isso não significa que seja triste, como pode parecer para algumas pessoas, mas sim é um natal diferente, com respeito e outras tradições interligadas com sentimentos ancestrais daquelas que foram caçadas e excluídas com olhares, taxadas de hereges ou de inconvenientes. Ficar sozinha, na noite do ano em que se celebra a família modelar, é uma conexão ancestral, em respeito a todos e todas que compulsoriamente, não têm famílias. Algumas tradições são delicadas demais para se entender. O que está por trás de uma possível solidão do dia 25 de dezembro, é um ato de respeito muito maior, que interliga-me com aquelas que realmente perderam tudo, e nunca tiveram ninguém, nesta data do ano.
Apesar disso, estou feliz, neste Natal eu ganhei presentes, e falo emocionada, de amigos queridos. Relembro-me que o ano de 2020, apesar de dificilmente pandêmico e empobrecido, encontrei mais famílias, cresci a minha, adentrei por outras. E mais outras sempre virão, germinando em flores no chão, e passeando em pólen pelo ar, diferente das árvores, fixas, em disputa pela luz e nutrientes locais. Ao contrário, as flores, quando não encontram possibilidade de vida em determinado local, dispersam-se em pólen, e nascem em campos ensolarados longínquos. Assim, são os dissidentes sexuais e de gênero, nossas famílias estão nutridas e ensolaradas em espalhamento pelo mundo.
Neste natal de pessoas nômades, em constante trânsito, como diz Linn da Quebrada, na canção “Oração”: “não nascem, mas vivem, vivem e vêm”.
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