“VIVÊNCIAS AFEMINADAS: pensando corpos, gêneros e sexualidades dissidentes”
O livro “Vivências Afeminadas: pensando corpos, gêneros e sexualidades dissidentes” parte da análise das narrativas de vida de sujeitos que se consideram pessoas afeminadas para dissertar sobre suas formas de apresentação em termos de gênero, sexualidade, a fim de refletir sobre o impacto que as leituras dos seus corpos geram socialmente e em suas próprias vivências.
No livro, as pessoas afeminadas são compreendidas como sujeitos lidos como homens no momento do nascimento, porém mesclam o masculino e o feminino em seus corpos tornando a sua aparência ambígua. Estes corpos se configuram como uma espécie de colcha de retalhos que se materializa na medida em que uma delicada agulha perpassa os códigos de gênero, costurando-os até formar a sua extensa malha.
Esse rompimento com as normas tem por efeito impossibilitar seu reconhecimento dentro do binário de gênero (oposição entre homem x mulher/ masculino x feminino). Defendo que essas divergências às normas possuem a potência de desestabilizar os discursos cisheteronormativos que organizam as relações sociais dos sujeitos revelando o caráter questionador destes corpos afeminados.
Por meio desse texto busco oferecer ferramentas que nos possibilitem compreender os discursos formados em torno da sexualidade e do gênero, que dão forma a nossa visão de mundo, e as maneiras com que as pessoas afeminadas constituem seus corpos e sua performance de gênero como um marcador social da diferença. Essa diferença é perpassada pela violência que funciona como um constante lembrete de que as normas não foram incorporadas adequadamente pelas pessoas afeminadas.
A forma e o conteúdo dessas violências expõem que, apesar de estarem ligadas também a sexualidade, é a relação complexa com o desvio de gênero que marca de forma mais intensa a sua narrativa. Para entender o contexto social em que vivem as pessoas afeminadas hoje, no primeiro capítulo, “Feminilidades masculinas, patologização e sua relação com o conceito de homossexualidade”, discuto como, ao longo do espaço-tempo, as masculinidades femininas passaram por processos de transmutação em seus significados.
O objetivo da discussão é apontar que o significado atribuído a feminilidade masculina não é monolítico, mas fluído. Esse breve passeio pela história, que nos levará da Grécia e Roma antiga até a atualidade, nos mostrará que a feminilidade masculina já foi associada explicitamente a uma forma de desvio de gênero e até mesmo a uma espécie de excesso de desejo heterossexual, completamente desassociada do desejo pelas pessoas do mesmo sexo/gênero, interpretação corrente na atualidade – inaugurada a partir da invenção da categoria homossexualidade e da sua patologização no século XIX.
No segundo capítulo, “Performatividade das Pessoas afeminadas: corpo, abjeção e dissidência”, discuto a matriz cultural do gênero desenhada por Judith Butler em “Problemas de Gênero”. A referida matriz expõe que há uma série de mecanismos sociais que coagem os sujeitos a criarem relações de continuidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual para que conquistem inteligibilidade no seio social, se legitimem como “sujeitos normais” e mantenham intacta a estrutura social vigente. Traduzindo em miúdos, a referida matriz revela que o sujeito, caso nasça com um pênis, por exemplo, precisa se entender e se apresentar na sociedade como homem e se engajar afetivo e sexualmente com outras pessoas do sexo/gênero oposto.
A partir do delineio dessa matriz disserto sobre as formas com que as pessoas afeminadas se distanciam desse modelo criando um corpo ambíguo a partir do embaralhamento dos códigos de gênero e também apresentando sexualidades múltiplas – não limitadas a homossexualidade. Exponho através da minha argumentação que as experiências corporais e sexuais dissidentes das pessoas afeminadas revelam possibilidades outras de identificação quanto ao gênero e a sexualidade que nos permitem complexificar e questionar a segurança ontológica que fundamenta a experiência dos sujeitos, visto que ela foi constituída a partir de um processo de naturalização das formas de ser homem e de ser mulher refletido na matriz cultural do gênero que essas experiências mostram ser
constituídas socialmente e historicamente.
No terceiro e último capítulo, “Corporalidades afeminadas, violências e as possibilidades de resistir e existir nas e pelas feminilidades”, proponho uma compreensão das performances das pessoas afeminadas a partir da perspectiva do fracasso desenhada por Halberstam em seu livro “A Arte Queer do Fracasso”. A pessoa fracassada, na perspectiva desse autor, é aquela que carrega em si o peso da marginalidade, da exclusão, mas que também carrega, contraditoriamente, a potência da rebeldia, do confronto com as normas e do gozo dessa marginalidade. Partindo dessa asserção e das análises das narrativas coletadas aponto que as pessoas afeminadas, por meio de suas performances falhas/fracassadas, incorporam o erro como constituição de si mesmas e ressignificam o fracasso o tornando em algo prazeroso, em novas possibilidades de constituir corpos, desejos, subjetividades inquietantes e de ser/existir em uma cultura cisheteronormativa.
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