O feminino no masculino: outros modos de ser homem na história
No texto da coluna passada dissertei sobre a masculinidade hegemônica. Nele expliquei que o referido modelo se reveste com a capa da naturalidade, utilizando assim como estratégia para se reafirmar enquanto norma, camuflando que constrói discursivamente aquilo que nos apresenta enquanto essência/substância. Defendi que a masculinidade hegemônica é, na verdade, constituída espaço-temporalmente sendo seu significado flutuante, não podendo ser lido fora da cultura e de forma biologizante.
Aqui retomo esse argumento de que a masculinidade não possui um caráter imutável e trans-histórico na tentativa de lhe atribuir bases mais sólidas, saindo da abstração conceitual. Através de um breve passeio pela história, compartilharei o exemplo de um outro modo de compreender o homem e o masculino, divergente do sentido adotado contemporaneamente. Não seguirei uma ordem cronológica. Dito isso, vamos abaixo dar início a essa jornada pelo período da Renascença.
No referido período, os militares europeus consideravam a masculinidade como sinônimo de austeridade, resistência, privação e controle do impulso do prazer. Os homens da época sustentavam a masculinidade através da guerra ou por meio de situações de conflito com outros homens em busca de sua honra – seja nos negócios, na política, entre outros. Os homens que se negavam à competitividade, que faziam amor em vez de guerra e que se dedicavam ao prazer eram lidos como afeminados, pois esses anseios eram entendidos como próprios do universo das mulheres.
Podemos retroceder ainda mais. Esse estereótipo, na verdade, já existia na cultura da Grécia e Roma antiga. Nesse espaço-tempo o homem que ostentava seu desejo pelas mulheres não alimentava sua masculinidade, na verdade, emasculava-se, pois, para se tornar desejável para o gênero oposto, era necessário se demonstrar mais afeminado e não mais viril. O desejo pelas mulheres os levava a adotar peças e produtos estereotipadamente femininos, a exemplo dos descritos por Lucian em um diálogo[1] entre gregos reproduzido por Halperin (2004, p. 93) em seu texto:
Em um antigo diálogo atribuído a Lucian, o qual descreve um debate entre dois homens sobre se mulheres ou garotos são melhores veículos para o prazer masculino, é o que advoga pelos garotos que é descrito como hiper viril, enquanto o defensor das mulheres, um belo e jovem rapaz, é descrito como exibindo “um habilidoso uso de cosméticos, para ser atrativo para as mulheres” (Tradução minha)[2]
Essas evidências também são encontradas no século XVII a partir da obra de Shakespeare. Quem não conhece o famoso livro Romeu e Julieta? Sinfield defende que, nesse famoso clássico, o escritor inglês nos apresenta o personagem Romeu caracterizado como um sujeito que carrega dentro de si a angústia de enfrentar a oposição entre o estereótipo da masculinidade e o da feminilidade causada pelo romance ao qual se entrega. Isso pode ser notado através da passagem de Romeu e Julieta que transcrevo abaixo retirado do livro de Sinfield (1994, p. 152):
“Ó doce Julieta, sua beleza me tornou afeminado, e em meu temperamento foram suavizados meus valores de aço!” (Tradução nossa)[3]
O homem afeminado, como observado acima, em muitas culturas era lido como um mulherengo que possuía desejos heterossexuais em demasia. Essa imagem do homem heterossexual afeminado está bastante distante do referencial de homem e masculino que permeia nosso imaginário. Em nosso tempo e cultura o homem com traços femininos está associado a homossexualidade e essa qualidade invariavelmente o desqualifica como homem, o que não necessariamente ocorria nas culturas mencionadas.
Esses exemplos nos ajudam a fortalecer o argumento de que a masculinidade (o gênero, de modo geral) precisa ser interpretado a partir da cultura e tempo na qual ele está, e também fortalece a nossa premissa inicial: a masculinidade como algo fixo e trans-histórico, detentor de uma “substância” (gênero como atributo), é uma ilusão criada pelo estimulo à crença de que o sujeito é formulado através de uma realidade ontológica pré-existente.
Em nossa cultura as práticas reguladoras que geram identidades coerentes operam via matriz das normas de gênero que têm a heterossexualidade como base. A produção das identidades coerentes requer a instituição da produção de oposições discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”, compreendidos como atributos expressivos de “macho” e “fêmea”. Ou seja, em nossa cultura para um homem ser legitimado como tal, ele precisa ter pênis, ser viril e ter desejos sexuais e afetivos pelo gênero oposto. Na nossa conjuntura o homem afeminado mulherengo é inimaginável.
Diante dessa estrutura é provocativo pensar que em culturas passadas o homem afeminado representava o galanteador que possuía excesso de desejo heterossexual, não é mesmo? Isso nos faz nos questionar como migramos da imagem desse homem afeminado mulherengo para o homem afeminado ligado estritamente à homossexualidade de hoje. Bem, essa transição será o tema sobre o qual me debruçarei na próxima coluna.
[1] O diálogo foi retirado do texto Erōtes, escrito por Lucian, um satirista e viajante grego do segundo século.
[2] In a late antique dialogue ascribed to Lucian, which features a debate between two men as to whether women or boys are better vehicles of male erotic pleasure, it is the advocate of boys who is portrayed as hypervirile, whereas the defender of women, a good-looking young man, is described as exhibiting “a skilful use of cosmetics, so as to be attractive to women.
[3] O sweet Juliet,thy beauty hath made me effeminate, and in my temper softened valour’s steel!
*Imagem de capa produzida por Francisco Hurtz.
REFERÊNCIAS
HALPERIN, D. How to Do the History of Homosexuality. Chicago e Londres: Editora da Universidade de Chicago, 2002.
SINFIELD, A. The Wilde Century: Effeminacy, Oscar Wilde and the Queer Moment. London: Editora Cassell, 1994.
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