Nesta terceira década do século XXI, a história desdobra a profecia de prosperidade das travestis

Inicia-se a profecia ancestral: poder e glória às travestis!

Aqui no esgoto, o tempo não passa. Ao contrário, satura, caustifica e, por onde quer que estejamos, é-nos negada a prosperidade do ano novo. Aqui no esgoto também comemoramos esta data, mas com esperanças contra-hegemônicas de acúmulo de riquezas em demasia. Ainda é preciso o suficiente para sobreviver. Cultivamos desejos anti-LGBTfóbicos, anti-racistas e [trans]feministas. Nossos maiores desejos são bem mais simples, de gozo corporal, como o desenvolvimento físico e intelectual e material para a manutenção da vida. Ter ao menos o mínimo.

Nesta terceira década do século XXI (21), iniciada hoje, a profecia ancestral das velhas para as novas, mortas tão cedo, velhas e novas ao mesmo tempo, tomam rumo ao futuro próximo, onde não mais teremos medo ao andar sob a luz do sol, e onde o poder e a glória travesti está envolto de alegria e não mais de lágrimas e sangue. A profecia anunciada diz-se de uma vida vivível, não subordinada ou rechaçada compulsoriamente, matada ao nascer.

Nesta nova década, mais e mais pessoas conseguirão entender e conscientizar-se das significações dos corpos que habitam terras outrora colônias [todos os corpos! Eu, tu e ele; nós, vós e eles!]. Estamos muito bem organizadas, já escavamos todos os buracos que nos enterraram e estamos revivendo, tornando à vida simbólica e literal, que nos foram tiradas. As colonialidades que definiram nossas mortes, não vão fazê-lo sempre, temos sede, neste pedaço de terra que ora é facilmente vendido com todas nós dentro, enquanto vidas mercantáveis, em apuros.

Objetificadas e desimportantes, somos compiladas ao adoecimento psicológico-químico-corporal, e mesmo assim, seguimos. Escavar, escavar, escavar. O que nos resta senão fechar os corpos e aguentar as balas da guerra que fuzilam até os ossos? Viramos pó, vidas em pó rapidamente alcalino, ceifadas. Mas enquanto pó, assentaremos em todos os cantos.

Somos o que eles não querem, para a manutenção de mais um novo ano novo, de colonialismos e colonialidades sobre as carnes ao chão. Quanto mais carnes ao chão, mais o ano novo é bom para eles, de prosperidade, projetos, família e lucro. Lucro é o que eles querem. Para nós, haverá um ano novo já velho, assim como o era ontem, antes de ontem, anos passados, décadas e séculos passados. Mas, assim não será mais.

Hoje, inicia-se, com carnes latejantes, a década do traviarcado.

Ao fim dos últimos anos, ao término de mais um ano, dos desejos das travestis, havia um em comum para todas, sempre tão longe daquele presente, de não sermos aterradas, soterradas, enterradas. Mas, hoje se desejávamos, agora desejamos bonanças, no presente imediato. Não somente eles podem ter seus futuros garantizados com outras preocupações que não fosse apenas viver. Nós, que vivíamos em projeção biônica, ainda estamos vivendo assim, mesmo que a dureza de nossos corpos já comece a amolecer doce, como quem está em empresas, escolas, universidades. Não somos mais corpos-paralelepípedo. Ou até somos, mas em tijolos dourados.

Se antes, eu adoeci em algum momento, e minhas promessas de fim do ano foram ficar longe da cisgeneridade e transfobia por incontável tempo, aceitando destinos calados, em silêncio externo, agora eu fermento em público, estou em cima, junto, ao lado, embaixo, de apoio e de amparo. As travestis já tomam seus devidos lugares, organizadas como samambaias e plantas vasculares.

Se em algum momento afastamo-nos de nós, por causa daqueles que disseram-nos, e dizem-nos, que não pertencemos a nós mesmas, agora decidimos que só poderíamos respirar se tivéssemos um sistema de vascular bom. É preciso reinventar-se planta, ora rizoma, ora erva daninha. Reinvenção profetizada sem medo, profecia que ataca grandes pedras, insuportavelmente pesadas. Pesadas em repouso, pedras que não querem descer ladeiras. Mas, que agora estão rolando ou em suspensão, prontas para rachar.

A profecia das antigas velhas jovens, mortas tão cedo, encontrou um caminho dourado de sobrevivência, autogerência e retroalimentação. Não há dúvidas, estaremos cada vez mais potentes para a dianteira de guerra. Gladiadoras, amazonas forjadas e conhecedoras das florestas mais densas que nos cercaram, cavalgamos e galgamos cada vez mais espaços, derrubando grandes barreiras fixadas para nos prender, até o sufocamento daqueles que nos odeiam não conseguirão mais desviar os olhares para não nos ver donas de campos agricultáveis.

O caminho dourado da profecia travesti da terceira década do século XXI (21) é a educação.

As travestis revoltaram-se pelas palavras e escritas, pela educação social, e aos poucos estamos chegando às escolas e universidades, ao mercado de trabalho, à luz do dia. Nos recusamos ao lançamento compulsório à falta de luz da noite e só voltaremos a ela caso queiramos, mas só se quisermos.

Também não aceitamos escusas, educaremos os filhos daqueles que nos mataram, educaremos os filhos daqueles que não nos querem por perto. As velhas novas que assistiram suas decadências impostas, em um laço de tempo apresentado como infinito, agora estão com suas promessas revigoradas. As velhas não desanimaram com as possibilidades de feitura do cotidiano, e as promessas-profecias ainda se voltam ao choro daquelas que catalogaram tabelas de mortes até ontem, mas só até ontem.

Se em suas origens, a palavra “calendário” significa “livro de contas”, hoje iniciamos mais uma catalogação das disposições humanas passíveis de gastos, dos tempos de existência. E o meu primeiro desejo-registro para esta década é viver, com desdobramentos físicos e subjetivos mais complexos que sequer caberia aqui a identificação, por ser um todo que sequer conheço, enigmático. E também não tenho a pretensão de traduzir.

Se já havíamos sido colocadas como pária, sozinhas em cidades, periferias ou locais rurais, pequenos ou grandes, nunca passamos pela vida indelicadamente, percebendo grosseiramente, míopes, as existências diversas. Bem por isso é que andamos, cada vez mais, com firmeza. Ao andar pela noite, desenvolvemos excelente visão e robustez, diferente dos becos encruzilhados que desejaram nos dar. Agora, e cada vez mais, eles saberão por onde viemos, para onde vamos e quantas mais vêm.

A década do traviarcado também não significa que será fácil, mesmo precisando ser rijas, que por onde formos e estejamos sempre haja amor, gentileza, carinhos e afetos! Que as lágrimas já derramadas não voltem a cair, mas, tornem-se alimento de um solo que foi secado por outros para que floresça em nós. Eles nos testam, mas no fundo, eles não sabem o que podem as travestis. A profecia de visibilidade e existências possíveis, mais alegres, das ancestrais e das novas vem aí! Não há desejo maior para uma travesti do que poder envelhecer e ter as vidas que às negaram. Estamos ao início, mas, a profecia diz que ao término da terceira década do século XXI (21) nós estaremos vivas e em todos os locais da sociedade! Feliz ano novo! Feliz década nova!

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Florence Belladonna Travesti

Travesti do mato, andarilha por sítios e criada por mulheres bisavó, mãe, tia e madrinha em São João do Sabugi - RN. Gosta do vento, de banho de chuva e rio. Ama doce de leite, provar sorvetes e bolos. Aventura-se por palavras lidas e escritas como quem beija o infinito, a própria liberdade.

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