Sobre como o genitalismo interfere ou define nossas vidas
Hoje, gostaria de falar um pouco sobre as questões do genitalismo, o fato da objetificação do nosso desejo ser concentrado na região do pênis e da vagina das pessoas. No caso de pessoas trans, essa é uma questão fundamental, pois mostra como a sociedade se organiza para nos excluir da vida afetivo-sexual, mas também para etiquetar quais os sistemas normativos do pacto biológico na reprodução de uma suposta configuração tradicional de “família”, composta por homens, mulheres e crianças cisgêneras, preferencialmente brancas (a família que comumente se vê em outdoors!).
Sempre que eu saio com vestimentas mais curtas ou justas, os olhares de algumas pessoas miram direto na minha região genital, e isso acontece com todas as pessoas trans, e até mesmos pessoas cis com aparências mais androginas. Isso, não somente, já é um motivo bastante claro para percebermos como nossa sociedade objetifica os corpos e de buscar compreender como as pessoas nos enxergam para possíveis relacionamentos de amizade ou amorosos, sendo uma das mais importantes e à primeira vista, a nossa configuração genital.
Somando, ou melhor dizendo, sistematizado enquanto uma das peças fundantes da “solidão” trans, ao que toca nossas organizações sociais afetivas, os olhares que denunciam o genitalismo, para uma pessoa trans, diz respeito ao modo como nossos corpos são rechaçados dentro de uma possibilidade de configuração familiar. Levando em consideração que a hétero-cis-normatividade se organiza para uma manutenção bio-opressora, a sociedade que atualmente estamos, faz a demarcação genital de uma mulher de pênis ou um homem de vagina enquanto pessoas ilegítimas, que não servem para demonstrações afetivas. Denuncia-nos também, sobre como nossos desejos precedem nossa própria existência social. Nosso olhar torna-se guiado, naturalizado, para que não percebamos como nosso corpo se organiza e organiza outros em comunidade.
A configuração do pacto genitalista cis-biológico, ao passo que despreza e organiza solidões trans, também afeta homens e mulheres cisgêneros, não obstante, o machismo e a objetificação do corpo da mulher cisgênera também dialoga com o genitaismo sofrido por pessoas trans. O que se configura, então, é como poderíamos compreender o desejo, ou pelo menos, uma maneira de se relacionar com outras pessoas, que não perpassam esse campo de curiosidade genital? Afinal, alguém que se relaciona com uma pessoa em busca de conhecê-la enquanto outra identidade humana diferente da sua, atraente, ou, ao se relacionar, imagina como deve ser o órgão ou o desempenho sexual dela?
Dentro do genitalismo e do pacto cis-biologizante heteronormativo que objetifica as relações sexo-afetivas, inclusive tornando-se uma questão psicanalítica, onde o outro só passa a existir para nós, quando torna-se objetificado, nós precisamos levar em consideração outro ponto importantíssimo: a monogamia. A configuração dos relacionamentos compulsoriamente monogâmicos, também organizam esses sistemas de opressão que vão de encontro com o gênero e a sexualidade, afinal, quando se pensa em um relacionamento, em um casamento ou em dividir uma casa com alguém, sempre pensamos em uma única pessoa. Isso, denuncia como nossa mente está formada a imagem estática do desejo hegemonicamente pré-definido.
Vale salientar, para que não haja um mal entendido, a questões levantadas sobre monogamia não é um “atentado” para que ela deixe existir. É preciso deixar claro que não se atenta contra a liberdade da monogamia, mas que quando a monogamia envolve o genitalismo e um pacto cis-biológico que excluem pessoas trans de qualquer possibilidade afetiva, enquanto pessoa, por supostamente não se adequar às mentalidades do que seria uma “família tradicional”, aí sim, nós temos um problema. A existência individual monogâmica pode ser livre de objetificações, mas em nossa sociedade, essas configurações afetivo-sexuais não estão tão livres assim, e é preciso compreende-las.
Voltando-se um pouco mais para a questão de como o genitalismo, o pacto cis-biológico reprodutivo e a monogamia interferem na vida de pessoas trans, um dos primeiros fatos, é a história estereotipada que nós não passamos de aventuras sexuais. Nesse sistema de objetificação, o Brasil, assumidamente (e os mostradores estatísticos dos Porn Hub ou Xvídeos dizem-nos todos os anos) é o país que mais assiste pornografia trans, mas também o que mais repudia os nossos corpos, ao ponto de ter o triste primeiro lugar dos países que mais assassinam mulheres trans e travestis, grupo que compõe 97,7% dos assassinados, de acordo com a ANTRA, além de pessoas LGBTs subnotificadas, em geral.
Além disso, o genitalismo sofrido pelas pessoas trans e naturalizado entre relações cisgêneras machistas e sexistas, denuncia um sistema de exploração pautado na subserviência sexual de mulheres cis e trans. Não obstante dessa discussão, a objetificação sexual está nas esperiotipações e polarizações sexuais do desejo, como a velha relação ativo/passivo, homem/mulher, quem não faz trabalhos domésticos/quem serve aos filhos e marido. Enquanto mulher travesti, a demanda genitalista coloca-me, também, em uma encruzilhada vivida por mulheres cis, com a diferença de que eu sou compreendida pela cisgeneridade enquanto um “step”, um passo ou degrau desnivelado, atrás de uma cortina de fumaça transfóbica que, extremamente bem planejada, nos tira da vida pública e coloca-nos nestes âmbitos privados e de privação, impedindo-me de falar. É nessa configuração também, de invisibilização e polarização ou separação das mulheridades, que o genitalismo opera.
Nessa meticulosa operação do genitalismo cis-biologizante, o que separa a mulher cis da mulher trans? É o pênis e a vagina? O sistema de opressão daqueles que nos objetificam triunfa, passa-se à crendice de que mulheres cis e trans estão em respectivos campos de objetificação que não dialogam, e não dialogando, separam-se radicalmente um do outro, morrem pelo silêncio e pela falta de espaço.
Obviamente, mulheres cis não tem suas mulheridades, ao contrário de nós, mulheres trans, mas um dos pontos que trago, é de como o genitalismo é danoso para essa grande categoria, intraduzível, de “mulher”.
Ainda assim, vale salientar outro ponto importante, que é o fato do sistema de genitalização das travestis, homens e pessoas trans, levar muita gente desse grupo social ao adoecimento. A chamada “disforia” genital tem várias faces e existe em diferentes motivos para muita gente trans, com seus corpos, em diferentes momentos de suas vidas, mas aqui, gostaria de tratar de uma construção disfórica específica que toca-me (a Florence): a ideia de ódio ao próprio corpo, condensado no ódio aos nossos genitais.
A própria ideia de odiar um órgão, parece-se desmedida, ninguém odeia o próprio fígado, o estômago ou o rim, por que odiaria o pênis ou a vagina? É preciso deixar claro que cada pessoa trans tem uma relação com o seu próprio corpo, mas particularmente, incomoda-me muitíssimo a ideia de que pessoas trans odeiam a si próprias e por isso transacionam. Pelo menos ao que toca ao meu corpo, fico perguntando-me o que é angústia existencial, enquanto pessoa em uma conjuntura social, e o que pode ser angústia gerada, partida da expectativa alheia colocada sobre mim. Esse exercício, faz-nos perceber o quão o projeto social normativo também quer que adoeçamos e acreditemos em tudo o que se diz por aí, sobre nós e nossos sentimentos, sobre nossa relação conosco.
De certo modo, sou levada a pensar em como a transfobia estrutural age sobre nós do seguinte modo: se a cisgeneridade acredita mesmo que odiamos nossos corpos, e passamos então a odiar-nos, damos o triunfo à cisgeneridade de ver-nos enquanto doentes. Os problemas enfrentados e surgidos frente às pessoas trans, em nossa sociedade, estão envoltos de um surgimento a partir do momento que alguém, com o intuito de deslegitimar a nossa existência, passa a difundi-lo. Ao que me toca, acredito mesmo que muita gente trans, cada vez mais, estão “de boa” com seus corpos.
É possível dizer que cada ponto levantado, nessa grande confusão genitalista, pode ser transcorrido muito mais, levando em consideração vários outros aspectos, inclusive dos problemas que mulheres trans e cis passam de maneira semelhante, pela condição de mulheridade, mas por ora, encerro dizendo que é preciso ficar espertes povo trans e povo ci. É necessário que possamos compreender o danoso genitalismo, e tentar ressignificar suas relações com outros e consigo. Que possamos doar afeto de maneira antigenitalista e anti-objetificante, afinal, das melhores lembranças da vida, estão os beijos e abraços dados puramente.
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