Indicação – O Livro Dos Guerrilheiros (José Luandino Vieira)

O livro dos guerrilheiros: narrativas, segundo volume da trilogia De rios velhos e guerrilheiros, do premiado escritor angolano José Luandino Vieira, é uma das raras obras africanas de língua portuguesa a abordar a homossexualidade masculina. Publicado em 2009, o romance de Luandino narra as lutas de independência angolana a partir da história de seis guerrilheiros.

Com grande beleza poética, Kene Vua, ex-guerrilheiro, nos conta da guerra a partir de um olhar sobre os sujeitos que a vivem, sem propor uma narrativa que a explique. No capítulo “Zapata: melhor dizendo: Ferrujado e Kadisu”, conhecemos a história de dois guerrilheiros “que sempre queriam estar juntos”, que “sonhavam juntos”, que viviam “conjuntados”, e de como os dois são percebidos pelos seus companheiros.

Além de narrar personagens que foram soterrados tanto pelo cânone colonial português quanto pelo cânone nacionalista e anticolonial angolano, Luandino narra a importância dos sujeitos dissidentes na construção da nação. A obra, no entanto, é imperdível não só pela sua temática, mas também pela poesia de sua narrativa. Veja um trecho abaixo.

“E estes eram os camaradas que sempre queriam estar juntos, numa amizade lá muito deles mesmo. De pé; em formatura de bandeira ou revista; sentados, sem tarefa ou em missão, descanso ou comida; em emboscada, lado a lado; deitados, no sono. Sonhavam juntos. Viviam assim, conjuntados. Tudo se repartiam, mesmo nódoa de seu simples pingo de café. E queriam se chamar de um só nome de guerrilheiro: Zapata. Porquê, só mesmo nosso comandante Ndiki Ndia podia saber.

E tanto faz é ele, comandante; ou, ainda, o camarada monitor político e mesmo o chefe das operações, se, distraídos, chamavam:

- Guerrilheiro Kadisu?...

ou:

- Camarada Ferrujado?...

eles se olhavam um no outro, olhavam nos outros, os outros - nós! - neles e o vento ficava-se a ouvir levar voz e eco dos camaradas responsáveis. Nosso comandante, o camarada Ndiki Ndia, dessorria, então de seu bigodinho, berrava voz de ordem:

- Guerrilheiro Zapata!

E se levantavam logo-logo os dois. Vinham os dois; recebiam os dois a fala, a crítica, coisa de ouvir ou calar, ou recado ou tarefa. Mas, se como assim era ordem de um só cumprir, então nosso comandante é quem tinha de nomear, designar - eles ficavam ali, quietos; mudos e surdos, esperavam.

[...] De sozinhos, eles mesmos não aceitavam se escolher: estragava a amizade. Então, nessas horas, escolhido o um, o outro se sentava. Tão quieto que as sombras dos paus lhe faziam desaparecer na confusão do acampamento. Só na hora que o designado voltava e lhe tocava no ombro ou na cabeça, o outro voltava no trabalho, ou na fala, ou qualquer coisa - até o regresso, não seria para nada, estava morto, ia com quem ia a alma dele"

No que, reunidos, nossos responsáveis desistiram de lhes dar tarefas individuais. No grupo, em secção ou reunião, na coluna, eles eram as duas mãos que lavavam se e lavavam a nossa cara: corajosos e fieis guerrilheiros, para vitória ou morte. Até que, em acções e missões, chuvas e fomes, fugas e emboscadas, a gente esquecemos, aceitamos: eles eram a santíssima dualidade, sempre às duas por um, o dual, o tu-e-tu" (LUANDINO VIEIRA, 2009, p. 550-556, versão kindle).

 

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Helder Thiago Maia

Doutor em Literatura Comparada pela UFF e realiza estágio de pós-doutoramento na USP. É pesquisador do NuCus/UFBA e da Red LIESS/Espanha. É editor da Revista Periódicus (UFBA).

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