Indicação – Nada digo de ti, que em ti não veja (Eliana Alves Cruz)
Publicado em 2020, da autora Eliana Alves Cruz, o romance Nada digo de ti, que em ti não veja narra o Rio de Janeiro oitocentista, com personagens que pouco aparecem na literatura canônica brasileira, a exemplo, de pessoas negras escravizadas, quimbandas, capitães do mato, inquisidores, indígenas, mas também conta com os donos do poder, especialmente as famílias Gama e Muniz. A obra desmascara as violências coloniais e cristãs, assim como também esmiúça as violências de gênero e sexualidade.
Nesse sentido, o livro é também a história de perseguição ao amor de Vitória, uma “quimbanda” negra congolesa, e Felipe Gama, um “sodomita” branco herdeiro de família escravocrata de origem judaica. As perseguições ao amor “nefando” e interracial vivido por essas duas personagens, assim como as perseguições aos cristãos-novos, ganham forças com a chegada do o Frei Alexandre Saldanha Sardinha, um corrupto inquisidor à “terra do pecado”.
O romance Nada digo de ti, que em ti não veja reescreve a presença de personagens negras e dissidentes de gênero e sexualidade na literatura brasileira, dando-lhes voz e deslocando a hegemônica autoria masculina e branca, ao dar visibilidade à autoria negra feminina. O livro, assim como as outras obras de Eliana Alves da Cruz, valem tanto pela força de sua narrativa quanto pelos deslocamentos produzidos no cânone literário brasileiro. Veja um trecho abaixo!
“Vitoria era o seu quinto nome desde que viera ao mundo. Ela nascera como o menino Kiluanji Ngonga. Quanto entendera sua verdadeira natureza, foi chamada de Nzinga Ngonga, depois virou sacerdotisa e era chamada de Nganga Marinda (sacerdotisa dos mistérios ancestrais). Desembarcou na América sequestrada dos seus e a batizaram como o homem Manuel Dias. Depois de conquistar sua liberdade, escolheu ser apenas Vitória, pois era assim que se considerava: vitoriosa. Considerava-se quase invencível, pois muito pouca gente que caminhava sobre a Terra havia vivido cinco existências em uma mesma, e escapado de tantos perigos. Esmero e capricho também poderiam ser seus nomes, pois sua figura chamava a atenção pela forma como se apresentava. Tantas foram as vezes que a chamaram de suja e imunda, que desenvolvera uma obsessão por apresentar-se impecável. Sendo considerada por muitos uma aberração, pensava que seria ainda mais rejeitada caso se apresentasse com o desleixo de certas damas que via nas ruas. Uma mania dispendiosa e considerada pecaminosa esta de estar lavando-se e tocando-se o tempo todo. Era coisa do inferno mais profundo, diziam suas vizinhas, nitidamente despeitadas por ela conseguir recursos para comprar água com frequência. Acostumara-se aos banhos com os índios, aliás, a maioria dos aguadeiros eram índios das missões dos Jesuítas. [...] Quando olhava sua figura refletida, o que via era apenas uma mulher. E uma bela mulher. Não se importava com o que levava entre as pernas. Sentia-se fêmea e não admitia que lhe dissessem o contrário. A faca andava amarrada em sua coxa para arrancar com ela o respeito que não lhe davam por bem. Nascera no Congo, nas margens de uma lagoa. Ainda não havia chegado à idade das iniciações quando perceberam que era diferente. Para a metrópole isso poderia ser condenável, mas tinha um lugar entre os seus. Não gostava de pensar nos motivos que a colocaram onde agora se encontrava e nem de recordar sua travessia pela calunga grande, que eles chamavam de oceano. Doía-lhe lembrar do momento em que descobriram que ela possuía um falo e não uma vagina” (CRUZ, 2020:38-40).
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