Guetos afetivo-relacionais e transfobia

Depois de assistir ao filme “Vento Seco”, sob direção de Daniel Nolasco (2020), no último Festival Mix Brasil, as personagens Sandro Karnas e Paula Astorga, interpretados por Leandro Faria Lelo e Renata Carvalho, respectivamente, trouxeram-me lembranças de um tempo longínquo em minha vida, ainda na passagem da adolescência, de sentimentos rápidos e intensos, em um período que hoje não faz mais sentido, mas que eu o vivi vulnerável e faz-me refletir sobre afetividade, guetos subjetivos, e algo que eu ainda não entendi sobre mim mesma.

A narrativa das personagens do filme aqui mencionado, me lembrou o quanto eu precisei, na época de adolescência, tomar responsabilidade sobre sentimentos como tristeza, desejo, carinho, amor e rejeição, para não sofrer tanto, junto com a organização das rejeições sociais à adolescente transviada. Tudo estava lá ao mesmo tempo, a LGBTfobia, a adolescência, os hormônios aflorados, e eu tentava sobreviver a um período um tanto melancólico.

À medida que fui crescendo e as pessoas ao meu entorno compreendendo que eu não corresponderia ao ideal de menino desejável, os afetos ficaram mais escassos por algum tempo, em alguns aspectos. Havia uma questão entre a solidão e sexualidade, naquela época, que eu não encontrava respaldo em lugar algum, nem em casa, nem na escola, nem com amigos e conhecidos.

A relação entre melancolia, gênero e sexualidade não é distante de muita gente LGBTQI+, quando se vive em contextos que não nos veem enquanto desejáveis, seja para amizades, relacionamentos afetivos, ou mesmo sexuais, em algumas medidas normativas. A melancolia daquela época vinha de um local diminuto, formado pelo fato de não ter vários sentimentos correspondidos, nos locais sociais em que eu era comum, e isso foi uma composição principal na minha existência, por algum tempo da adolescência. Eu não me sentia existente em afeto algum, vindo de ninguém. Havia algo vazio e deslocado.

Naquela época eu não sabia lidar com esses sentimentos, começando pelo fato de não saber, também, o quão a mentalidade comum acerca das dissidências sexuais e de gênero eram danosas. Descobria todos os dias como os preconceitos surgiam em relação ao meu corpo, ao mesmo tempo em que os vivia em descoberta e sentimento.

Apesar disso, com o tempo, a gente aprende a falar sentimentalmente também, tomar responsabilidade afetiva, cuidar de si próprio, e compreender nossos deveres de cuidado e autocuidado, e isso me leva a um outro ponto, de danos no campo afetivo centrais, do que chamamos de “solidão da pessoa trans”.

“Solidão da pessoa trans” refere-se a coisas ruins que acontecem conosco, e estão em vigência em nossa sociedade transfóbica, que é a exclusão de ambientes sociais, familiares, empregatícios e afetivos… literalmente nos deixando sozinhas. Tudo isso forma uma solidão cáustica, que nos corrói em diferentes maneiras de objetificação. E isso é extremamente ruim para a nossa saúde mental, afetiva, etc.

Toda essa sobrecarga finda por nos exaurir de diferentes maneiras, e muitas vezes isso reflete em processos de adoecimento imposto, muito sutilmente. E mais sutil ainda são as deslegitimações disso, como “coisa de gente trans”, ou “trans é a pessoa que odeia o próprio corpo”. Essas frases também escondem processos em que nossa sociedade organiza para nos adoecer e arrazoar enquanto “besteira”, “mi-mi-mi”, “repetitivo”.

O que não contavam é que os mesmos guetos que a cisgeneridade e heterossexualidade compulsória relegaram ao povo LGBTI+, para nos localizar subjetivamente, também fez com que nós, enquanto comunidade, nos protegêssemos. Eles não contavam que poderíamos nos unir e formar grandes famílias, grandes culturas, vocabulários, modos de vestir, etc. E isso vai de encontro com a ressignificação da ruindade da palavra que nos cerca: “gueto”. Muitas vezes, no exercício de viver, é no gueto que a gente se sente protegida.

O crivo do gueto me molda também. Mas não qualquer gueto, já que levando-se em consideração que todos os preconceitos que passamos nos dá investidas sobre como a sociedade nos ver, isso também forma nossas identidades. Invertidas que não pedimos, mas que somos colocadas de frente logo nas mais tenras idades.

Para esses guetos subjetivos, a transfobia é agente de sexualização e objetificação corporal para a “adequação” social, ao longo da vida, que nos leva de encontro com aspectos íntimos de “não-famílias” que são gigantes famílias acolhedoras.

Passado por tudo isso, escrevo esse texto porque às vezes pego-me pensando sobre essas relações tão enquadradas, e constato o quão, por um lado, eu possa estar sozinha, mas por outro, o quão eu tenho uma gigante família em calor e trânsito. Isso me leva à incerteza constante da ideia de “família convencional”, que eu não quero. Ou pelo menos não sei se é o mais acertado, de fato, ou se é coerente, se um “amor tranquilo”, como diz Cássia Eller, poderia mudar tudo isso, mas é o que me passa ao momento.

Como disse, o gueto também me subjetiva em sentimentos de um não-lugar, de um não-saber sentimental que às vezes não é ruim, mas que ao mesmo tempo também é todas-as-possibilidades, quanto à ideia de “família”.

É preciso parar. O envolvimento da transfobia, que colocou-me e disse-me inadequada para “famílias” ou relacionamentos afetivos, é a mesma que só me quer nas escondidas, assim como o desejo de “casamento” e “casal” envolve-se em algo de desejo cultural universal de bem-estar e felicidade que, ao pano de fundo, visa a manutenção de espécie e cultura, que deixa tudo como está.

Os guetos, solidões e piadas que foram-me apresentadas tão logo começou minhas descobertas afetivo-relacionais, acabaram por fazer com que eu voltasse-me ao bem-estar da amizade, para o meu próprio bem-estar, longe de cortinas transfóbicas, longe do sentimento de posse e inadequação. O que seria o sentimento de pertencer a alguém por causa de um relacionamento afetivo-sexual, senão o ato de colocar a si próprio na posição de objeto?

É possível se subjetivar em constante manutenção, sempre em transição, de maneiras jamais estabelecida, mas panorâmica, quando lançado olhares aos processos da vida.

Finalizo dizendo que isso não é um texto que pretende ser algo, ou dizer algo com exatidão, mas é um exercício de caminhada para guetos subjetivos meus, que eu tenho feito há algum tempo, e que pode ser desnexo, ou fazer todo o sentido para alguém.

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Florence Belladonna Travesti

Travesti do mato, andarilha por sítios e criada por mulheres bisavó, mãe, tia e madrinha em São João do Sabugi - RN. Gosta do vento, de banho de chuva e rio. Ama doce de leite, provar sorvetes e bolos. Aventura-se por palavras lidas e escritas como quem beija o infinito, a própria liberdade.

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