Na íntegra – Museu Bajubá completa um ano
Idealizado por Rita Colaço e tornado realidade em parceria com Luiz Morando e Remom Bortolozzi, o Museu Bajubá “https://museubajuba.org/” completou um ano em junho. O Lalidis conversou com Morando para entender melhor o papel do Museu na comunidade LGBTQIA +, o que é, de onde vem e para onde vai esse projeto.
- Inicialmente, o senhor poderia dizer o que é o Museu Bajubá?
O Museu Bajubá é um museu totalmente digital. Ele nasceu com a finalidade de funcionar como um reservatório de territórios, de sociabilidade, de pessoas dissidentes de sexo e de gênero. Isso significa que a equipe responsável pelo Museu Bajubá vai reunir informações, dados, imagens, roteiros de territórios por onde essas pessoas circularam nas cidades e garantiram, dessa maneira, uma forma de convivência, de sobrevivência, de resistência, de construção das suas identidades. A finalidade do Museu ser totalmente digital é tornar essas informações mais acessíveis. Então, no site nós vamos disponibilizar os roteiros desses locais, desses territórios de convivência ao longo da história e vamos disponibilizar exposições temáticas que vão ter durações variáveis. A primeira foi aberta no dia 5 de agosto, e vai permanecer até o dia 26 de novembro, é uma exposição dedicada à memória de João do Rio “https://museubajuba.org/cintilando-e-causando-frisson/”, um escritor e jornalista homossexual do início do século XX aqui no Brasil.
- O nome do Museu é muito interessante e despertou curiosidade em mim, que não sabia muito bem o significado de “Bajubá”. Você poderia contar pra gente o que essa expressão significa e o peso que ela tem?
As pessoas podem encontrar uma variante desse termo, que é “Pajubá”. É aquilo que chamamos de socioleto, uma espécie de dialeto que caracteriza uma determinada comunidade social e utiliza esse dialeto para se comunicar, se proteger e não ser compreendida durante suas formas de comunicação por quem não domina aquele dialeto. Então o “Bajubá” ou “Pajubá” nasceu dentro de territórios e de grupos formados por pessoas travestis, como uma maneira delas se fazerem compreender entre si, e principalmente com a função de chamar atenção, mostrando alguma situação de perigo. Em geral as travestis utilizam o Bajubá como forma de comunicação quando elas percebem, por exemplo, determinada possibilidade de violência, de ataque, de manifestação transfóbica por parte de policiais ou pessoas que se mostram agressivas, resistentes à convivência com elas em determinados locais, como bares, a rua e alguns eventos populares. Esse socioleto nasce de uma cultura de matriz africana, são termos, palavras, expressões que foram trazidos pelas pessoas escravizadas e em geral esse socioleto está ligado às religiões dessa matriz, como o Candomblé e a Umbanda. É uma estratégia de defesa que foi criada naturalmente ao longo da história e da convivência entre pessoas que se reconheciam com essa identidade de gênero, travesti, e que foi se disseminando por outras identidades desse grupo maior de pessoas dissidentes de sexo e gênero, então é muito comum você encontrar pessoas lésbicas, gays ou transgênero que utilizam o Bajubá como uma forma de comunicação, independente de ser nesses momentos possíveis atos de violência ou em momentos de lazer, de convivência dentro dessa comunidade.
- Muito se fala do progresso que a comunidade LGBTQIA+ vem conquistando com sua maior visibilidade nos últimos anos, mas teve muita gente incrível que lutou quando era muito mais difícil e muito mais injusto ser quem se era do que é hoje. Houve uma decisão de concluir que esse legado precisava ser registrado?
De fato há um conjunto de transformações muito grande ao longo da história que permitiu a conquista de uma maior visibilidade e muitas vezes a gente deve agradecer a determinadas pessoas que tomaram a frente e coordenaram ações que levaram à efetivação dessas conquistas. Essas ações exigiram muita luta e existiram em decorrência de injustiças que esse grupo de pessoas sofreram ao longo do tempo e da nossa história. De fato, esse legado precisa ser preservado e é isso que de certo modo a gente tenta fazer no Museu Bajubá, mas pensando em termos de territórios. Há diversos grupos sociais que disputam o espaço urbano e às vezes disputam o mesmo território, a mesma área de convivência no espaço urbano. As pessoas dissidentes de sexo e de gênero também, elas tentam estabelecer áreas de trânsito, de relacionamento social, e até mesmo de relacionamento afetivo, sexual, como os locais de “pegação”, por exemplo, dentro desse espaço urbano. Essas disputas acontecem ao longo da história e esses territórios que são conquistados dizem muito, de formas de construção de uma identidade, formas de construção de laços sociais, afetivos, de convivência, dentro desses grupos de pessoas. Vem crescendo o número de pessoas interessadas em pesquisas sobre esses territórios e até mesmo essa história do registro, da recuperação e de uma identidade desse grupo. Há um legado e há um acúmulo de conquistas que foram adquiridas ao longo da história e esse legado precisa sempre ser lembrado, estudado, se tornar motivo de orgulho dentro da comunidade. O Museu Bajubá, nesse sentido, funciona como uma espécie de instrumento para preservação de uma parte dessa memória. A gente tem consciência que não vai conseguir abarcar toda a memória, todos os territórios de sociabilidade que existiram no Brasil. Nesse sentido, lá no site do Museu a gente tem um espaço reservado para o que estamos chamando de Giras, utilizando o vocabulário Bajubá, as Giras são os territórios de convivência e na tecnologia dos Museus, é o que nós estamos chamando de Estações. Já temos quatro estações: Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. A princípio, essas quatro Estações vão apresentar roteiros do passado e também do presente, que revelam esses territórios que foram conquistados, mantidos e possuem memória de convivência e sociabilidade das pessoas dissidentes de sexo e gênero.
- Como foi o processo que trouxe o Museu Bajubá à vida?
Essa iniciativa nasceu do esforço e da proposta de uma história já conquistada pela pesquisadora e historiadora Rita Colaço. Ela é uma ativista do original movimento homossexual brasileiro, lá na virada dos anos 70 para os anos 80, ela participa dessas ações, dessas conquistas, desse processo de transformações do movimento LGBTQIA+ aqui no Brasil. Ao longo da segunda década dos anos 2000, ela começou a desenvolver roteiros na cidade do Rio de Janeiro, aquilo que chamamos de walking tour, roteiros em que a pessoa orienta, dá informações a um grupo de pessoas interessadas sobre a memória de determinados espaços urbanos. A partir daquele momento, por volta de 2012, Rita iniciou esses walking tours. Ela anunciou a realização e as pessoas que foram alcançadas e se interessaram por esses anúncios participaram desses roteiros iniciais. A partir do envolvimento da Rita e do conhecimento que ela estabeleceu comigo, por exemplo, aqui em Belo Horizonte, ou com o Remom Bortolozzi, de São Paulo, por volta de março de 2020, ela propôs essa iniciativa de formar um museu digital que preservasse a memória dos territórios e sociabilidade de convivência LGBTQIA+. O lançamento do Museu aconteceu oficialmente no dia 12 de junho de 2020 e durante esse período de um ano, nós três, que somos co-fundadores mas sempre sob a liderança da Rita, partimos para a construção do site, procurar uma pessoa que pudesse desenvolver o site que iria abrigar o Museu Bajubá. Em uma outra frente, começamos a pensar na exposição sobre os 140 anos de nascimento do João do Rio e pelo menos já deixar em previsão a segunda exposição, que vai entrar em cartaz no dia 27 de novembro de 2021, quando se comemora 55 anos do primeiro concurso de Miss Travesti aqui em Belo Horizonte. Esse é o processo, é lento, muito trabalhoso, que exige muita atenção da área digital principalmente. Nós três somos leigos então precisamos de uma assessoria, uma consultoria da empresa que desenvolveu o site do Museu. Rubens, dono da empresa, foi muito atencioso, atendeu nossas demandas de uma maneira muito atenta e muito pronta. Tanto que o site está em funcionamento pela compreensão que o Rubens teve desse projeto e da ajuda que ele deu na formulação deste trabalho. Foi um processo muito trabalhoso e muito prazeroso, como todo processo de criação é. Naturalmente, a gente não esperava que fosse diferente, nós temos muito orgulho de ter executado esse projeto e esperamos que as pessoas que possam visitar a exposição “Cintilando e causando frisson” – 140 anos de João do Rio, possam gostar e conhecer mais sobre João do Rio por meio dessa exposição. Esperamos também que os visitantes do Museu Bajubá aguardem as novidades que a gente tem na constituição dos roteiros, nas Estações, os roteiros de sociabilidade LGBT de Belo Horizonte, São Paulo, Rio e Curitiba, vão ser construídos e colocados no site pouco a pouco. Nós esperamos então que nossos visitantes tenham muito prazer também em conhecer essas informações.
- Depois de um ano registrando essas histórias de resistência, trazendo inclusão e reparações históricas, o que o Museu significa pra você hoje?
Esse ano inicial de preparação do Museu foi um ano mais reservado, destinado à construção do site e à preparação da primeira exposição. Na verdade, nós três que somos co-fundadores do Museu Bajubá, eu, Rita e Remom, já temos um longo histórico de pesquisa com resgate de memória nas nossas respectivas cidades. Aqui em Belo Horizonte, desde o final dos anos 80 eu trabalho constituindo um acervo de memórias sobre a comunidade LGBTQIA+, e desde o começo dos anos 2000 eu me dedico a buscar e recuperar essa memória por meio da imprensa belo-horizontina, de processos judiciais e relatos orais. Algo em sentido equivalente a Rita e o Remom fazem, Rita no Rio e o Remom em São Paulo, então já temos um repertório grande e vamos utilizar muito desse material que nós viemos acumulando, colecionando e constituindo ao longo do tempo nas atividades que estão previstas de serem realizadas no Museu, nos roteiros e nas exposições. Para nós isso significa um motivo de grande orgulho. É uma felicidade muito grande poder utilizar esse material como uma fonte de informação clara, correta, segura e acessível. As pessoas do nosso público podem conhecer mais e gerar pesquisas a partir desse material. Temos clara consciência de que não estamos concluindo nada, estamos em meio a um processo e que o Museu Bajubá poderá servir como inspiração, como forma de estímulo para novas pesquisas que surgirem e isso nos deixa muito orgulhosos. Obrigado pela possibilidade de falar com vocês do Miss LALIDIS, e espero que a gente tenha outras oportunidades de conversar. Grande abraço.
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