A monstruosidade da travesti gorda que vai “explodir”
Semana passada, eu estava passando em determinada rua, e uma senhora tão gorda quanto eu, disse em boa entonação, tendo a certeza e desejando ser ouvida: “Vixe como tá gordo, ele vai engordar até explodir!”. Deu-me vontade de virar-me e dizer “Mulher a senhora também é gorda, não tem que reparar em mim”, mas comecei a rir, e segui meu caminho. No fim, achei quase poético, uma gorda reparando em outra, em tom ruim, se não fosse trágico, a gordofobia fazer tamanha desidentificação.
Mas antes, em primeiríssimo lugar: corpo gordo é lindo.
Assim como a travestilidade, ser gorda perpassa uma existência ímpar, considerando que não estou dentro de uma expectativa do que é belo. Assim como ser travesti, ser gorda perpassa a construção de mortificações desumanas, pelo tamanho do corpo gordo, ou do corpo supostamente “masculino”, que não tem proporções femininas.
Como se fosse uma das piores infrações sociais, ter um corpo grande, com proporções grandes. Desde pequena, na escola, foram gatilhos para agressões LGBTfóbicas, que sempre começavam pelas proporções do meu corpo, com apelidos como “baleia”, “rolha-de-poço”, “bunda-mole”, “bila-bilú”, “dona-redonda”. Xingamentos que quase todas as pessoas gordas, senão todas, já ouviram, e que fazem-se presentes pulsantemente no imaginário das pessoas, alguns dos quais, construídos midiaticamente.
Nesse processo de desidentificação, nossas referências são eivadas, não se estuda na escola as referências de beleza ao longo do tempo, em diferentes culturas, nem se fala em casa sobre isso também. Neste tocante, é interessante ressaltar que muitas vezes, é dentro de nossa própria casa, com alguns parentes, que somos ensinadas a odiar nossas proporções corporais.
É preciso tomar cuidado, e pensando nisso, há uma agência social fundamental na própria história, que resgata nossas maneiras de enxergar o mundo e nosso próprio corpo, quando nos debruçamos por essas formações estéticas.
Nesse sentido, a monstrificação molda a mirada do desejo de determinados corpos, uns pelos outros. Crescidas e acostumadas, ou melhor, amansadas por uma indústria midiática que sempre colocou o corpo gordo no campo do risível, dificilmente fomos vistas enquanto alguém de desejos, sexualidades e sensualidade.
Felizmente, a chave de virada, ao meu ver, mas ainda dissidente, são produções culturais e comerciais feitas por pessoas gordas, que reconhecem a legitimidade da nossa sensualidade, sexualidade e desejos. Por isso mesmo, não somente eu, mas muita gente gorda sente profundamente a inexistência desse local de visibilidade também, e compreende a urgência das implicações da gordofobia em campos afetivo-sexuais e sociais.
Se a gordofobia atinge gente cisgênera no campo social, em sentidos básicos como adentrar por determinadas áreas profissionais, em relação a pessoas trans, isso é agravado, considerando que esse grupo social muito raramente está no mercado de trabalho formal, por já serem vulnerabilizadas pelo gênero.
Veja, a organização de padronização social dos corpos dialoga diretamente com uma objetificação desumana, e sem humanidade, não passamos de uma fôrma que é considerada tão somente para agradar aos olhos alheios, prazerosamente, como algo a ser considerado belo.
Se falamos de beleza, então também falamos de vaidade, e isso levanta uma carga subjetiva outra, há pessoas que se constroem para adequar seus corpos em formas alheias, desejando ser desejadas e tomar para si elogios de bom físico a partir de terceiros. Em outras palavras, adequar-se às vaidades alheias para sentir-se vaidosas é arrasador, ao passo que, mesmo que muitas vezes seja involuntário, dentro dessas normatividades, qualquer interferência em expectativas de adequação pode gerar um adoecimento sem fim.
Falta referências, e eu adoraria falar de outras maneiras, mas fico em alarme sobre o quanto a gordofobia é uma aversão a grandeza dos corpos, onde “grande” e “monstruosidade” são palavras diretamente atreladas uma à outra.
Vale salientar ainda sobre pistas de deslegitimação, quando somos facilmente descartadas quando lançam a nós a frase “mas gordura faz mal à saúde, a medicina comprova isso, você nega?”. Não, eu não nego, mas é preciso salientar que gordofobia tem a ver com padrões de beleza opressores que desumanizam, e não exatamente com a obesidade enquanto doença crônica. A obesidade é um disparador em pano de fundo para a gordofobia que nos escorraça de alguns locais pela monstrificação dos nossos corpos. Quem sofre de obesidade SABE que é uma doença crônica que deve ser controlada, à medida do possível de cada pessoa gorda, e que pode ser geradora de outras doenças, não precisamos que outras pessoas nos alertem disso.
Não se deve confundir gordofobia com questões médicas, e muito menos reparar negativamente o tamanho dos corpos alheios. Aliás, é interessante perceber que todas as deslegitimações populares, por vezes, encontram no campo “médico” um respaldo. Aqui vale salientar que, por mais que muitos médicos de hoje não estejam nessa inserção, o campo científico da medicina é de disputa de poderes que corroborou, muitas vezes, para a formação de preconceitos que acabaram sendo absorvidos popularmente.
Isso tudo vai causando uma desidentificação corrosiva ao ponto de uma pessoa gorda não gostar da estética gorda de outra pessoa, e usar de palavras em tons violentos. Sinto muitíssimo pelo cooptação de mentalidades que não gostam de pessoas gordas, e vale dizer que eu problematizei, até agora, uma questão minha que aconteceu com uma mulher cisgênera, mas a gordofobia, como um problema estrutural também não isenta pessoas LGBTs de cometê-la.
Enfim, minha referência de beleza é minha corpa travesti gorda. Que cada pessoa possa ser sua própria medida, e encantar a si próprio, antes de qualquer outra pessoa.
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