João W. Nery
Em seu livro autobiográfico Erro de pessoa: Joana ou João? (1984), João Nery nos relata suas vivências pessoais, afetivas, familiares, profissionais e também a experiência da descoberta de sua identidade de gênero. Ao narrar a questão da identidade trans, João Nery, traz ao seu leitor um universo repleto de questionamentos que o acompanharam em muitos anos de sua vida: “Algo estava errado. Restava saber se com eles ou comigo.” Assim, o autor, em um tom de confidência, relata em seus escritos, os conflitos vividos desde a infância quando, durante a noite, puxava o seu clitóris na esperança de que o sexo masculino crescesse em seu corpo.
Em uma linguagem simples repleta de profundas reflexões sobre quem seria esse sujeito que nasceu e foi registrado como Joana, mas que a consciência de seu corpo, identidade, gênero e, acima de tudo, individualidade lhe mostrava cada vez mais forte e assertivamente o sujeito João, o ser que se conta nessa obra nos mostra que, muitas vezes, grande parte da sociedade traz consigo doses significativas de opressão, violência, discriminação e ignorância quando se trata da vivência trans. Em uma perspectiva cisgênero, a linguagem se coloca como um importante instrumento de poder e de normatividade das performatividades de gênero e da relação direta entre sexo, gênero e identidade de gênero fazendo com que João Nery, muitas vezes, nos pontue antes de apresentar uma pessoa em sua narrativa se aquela lhe tratava como Joana ou como João. Desse modo, as violências aparecem, constantemente, aos olhos do leitor se iniciando no que diz respeito à linguagem, passando pelo tratamento social na vida cotidiana e chegando à corporalidade. Claro que, as opressões não se delineiam de forma tão didática como a que exponho aqui, elas se mistura em um eterno contínuo não hierarquizado.
Revelando alguns momentos difíceis de sua vida durante a infância até a momento da realização das cirurgias para a mudança de sexo, João Nery nos traz também momentos importantes de felicidade, conforto e acolhimento: “Amanda se revelava, a cada dia, a melhor companheira que eu poderia ter. E esse voto de fé, ela manteve até o fim.” Longe de essencializar a identidade trans, o sujeito que se conta traz ao seu leitor a consciência das dificuldades do (auto)reconhecimento quando inserido na sociedade brasileira, marcada fortemente pelos padrões machistas, patriarcais, cis e heteronormativos, dos anos de 1950. É nessa perspectiva das pluralidade das subjetividades que João Nery narra experiências muito particularidades desse homem que via na “monstruação” (como ele próprio se refere à menstruação), uma das piores experiências que o seu corpo biológico poderia lhe impor. Afinal, se o corpo não acompanha a mente, cabe a esse sujeito, com os avanços da medicina e também com os seus limites, buscar a sincronia: “Se troquei a roupa, o cabelo ou o corpo, não troquei a cuca. Somente a ajustei melhor.”
Por fim, João Nery, em sua escrita autobiográfica, nos mostra um sujeito que acredita que a resistência e o recomeço são movimentos constantes da vida: “Não tive triunfos fáceis, mas os tive, e me sinto mais forte do que nunca para continuar a opor resistência a todos os valores falsos que distorcem e violentam, de algum modo, os homens em suas infinitas maneiras de ser. Sobretudo, lutarei para poder estar constantemente invadido por uma paixão limpa e profunda – que se tem milhões de vezes na vida – para recomeçar.”
*João Nery (1950-2018) foi psicólogo, escritor e ativista pelos direitos LGBTQIA+ sendo também o primeiro homem transexual a realizar cirurgia de redesignação sexual no Brasil em 1977.
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