Indicação – Mornas eram as noites (Dina Salústio)
Publicado em 1994, Mornas eram as noites é uma coletânea de trinta e cinco contos da poeta e prosadora cabo-verdiana Dina Salústio. Os textos protagonizados por crianças abandonadas, prostitutas, moradores de rua e adolescentes grávidas, são consideradas formas de problematizar as questões sociais e de fotografar as diferentes realidades do país. Além disso, a voz narrativa feminina não só enriquece as discussões sobre as normatividades e as violências de gênero e sexualidade no contexto cabo-verdiano, como também amplifica as afetividades e os laços de amizade e erotismo entre mulheres.
O amor lésbico, no entanto, é mais voltado a uma sugestão fantasmagórica, uma ausência presente, como hegemonicamente ocorre em obras africanas de língua portuguesa, do que um tema explicitado. Nesse sentido, o conto “Morrer de Amor”, entre a poesia, a ironia e o não dito, é um dos poucos textos que sugerem uma leitura mais explícita do amor entre mulheres, o que nos permite sonhar com novas noites e mornas que construirão a lesbianidade a partir de sua presença. Abaixo um pouco do conto “Morrer de Amor”.
“Era uma unha vermelha do dedo maior de uma mão como eu sonhei as mãos de uma mulher: suaves, exuberantes de ternura e compridas, compridas até ao infinito de mim. [...] A unha cravou-se-me na barriga. Meu Deus faz com que ela não me toque no umbigo, por favor! Lembra-te que sofro de cócegas. Incorrigíveis cócegas. Insuportáveis cócegas. [...] Refilei contra os bárbaros costumes ocidentais que me fecharam os olhos e as outras minhas portas, impedindo-me definitivamente de ver e cheirar a dona que de forma tão insólita manifestava a sua tristeza pelo meu desaparecimento. A unha vermelha escorregou, enrolou-se-me num cabelo, puxou-o e eu dei um grito capaz de acordar qualquer morto, blasfemando contra as farpas da vagabunda. Ângela encostada a mim, suave como a luz da tarde que entrava pela janela, sorriu e disse numa voz vinda do fim do mundo: - Passaste pelo sono, amor. Abracei-a feliz pela vida reinventada e beijei a safada da unha enorme e vermelha” (SALÚSTIO, 2002, p. 9-10).